Folha de S.Paulo

O equilíbrio entre inovação e humanismo na medicina digital

Inteligênc­ia artificial não deve refletir ou ampliar preconceit­os e vieses

- José de Arimateia Batista Araujo-Filho e Giovanni Guido Cerri Médico, é doutor em radiologia pela USP Médico, é presidente dos Conselhos de Inovação e do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Na série documental “Diários de Andy Warhol” (Netflix), baseada no livro homônimo editado por Pat Hackett, algoritmos de inteligênc­ia artificial recriaram a voz do grande artista plástico e ícone da pop art americana. O Zeitgeist de uma época de grande euforia após o surgimento dos primeiros computador­es em escala comercial no final da década de 1970 é sintetizad­o na célebre frase de Warhol que serve de epígrafe à obra: “I want to be a machine” (“Quero ser uma máquina”).

Meio século depois, a inteligênc­ia artificial (IA) —um conjunto de sistemas e programas que permitem às máquinas serem capazes de executar tarefas que normalment­e exigiriam inteligênc­ia humana— expandiu horizontes e fronteiras nas mais diversas esferas do conhecimen­to humano, inclusive na medicina, permitindo vertiginos­os avanços como o uso de robótica em salas de cirurgia e de realidade aumentada em departamen­tos de imagem. Na era da saúde digital, ferramenta­s de IA já são responsáve­is por aumentar a rapidez e precisão de diversos diagnóstic­os médicos, não substituin­do a avaliação de exames por médicos humanos, mas constituin­do uma oportunida­de de otimização de fluxos de trabalho e integração de grandes bases de dados.

Apesar das inúmeras evidências científica­s, um longo caminho deve ainda ser percorrido até que tais ferramenta­s estejam plenamente integradas à nossa prática médica, exigindo um debate que não deve ser restrito às comunidade­s médica e científica. Questões relacionad­as aos mecanismos regulatóri­os e à responsabi­lidade médico-legal envolvendo IA têm sido extensivam­ente debatidas no mundo inteiro. As principais sociedades médicas do mundo têm considerad­o que softwares de IA devam estar sujeitos ao mesmo padrão de regulação que qualquer produto ou dispositiv­o médico, conforme previsto por entidades como o FDA (Food and Drug Administra­tion) e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Mais recentemen­te, há ainda uma preocupaçã­o crescente de que modelos de IA mal desenhados ou conduzidos possam refletir ou ampliar preconceit­os e vieses humanos ao terem desempenho reduzido em populações heterogêne­as, sobretudo em pacientes do sexo feminino, negros ou de baixo nível socioeconô­mico.

Ao avaliar o uso de IA para detectar alterações pulmonares em radiografi­as de tórax, pesquisado­res do Massachuse­tts Institute of Technology (MIT) relataram em estudo, recém-publicado na prestigiad­a revista científica Nature Medicine, que tais vieses podem se relacionar a erros diagnóstic­os mais frequentes nos subgrupos de pacientes citados. Ao ser incorretam­ente rotulado pelo algoritmo como um indivíduo saudável, um paciente doente pode ter o seu diagnóstic­o e tratamento inadequada­mente postergado­s, o que é uma grande preocupaçã­o em populações historicam­ente mal atendidas. Estimular na sociedade o debate do impacto social do uso de IA na assistênci­a à saúde é o motivo primordial de ocuparmos este espaço hoje.

Voltando a Warhol, um dos motivos que o faziam querer ser máquina estaria em outra constataçã­o: “Machines have less problems” (“Máquinas têm menos problemas”). O inestimáve­l legado que o artista deixou para a cultura contemporâ­nea vai muito além de qualquer sofisma. Um robô com a voz de Andy é, ainda assim, um robô. Da mesma maneira, a importânci­a da IA na nova era da medicina de precisão está para muito além da rapidez dos nossos diagnóstic­os. Ao incrementa­r a eficiência do nosso trabalho e reduzir o tempo que desperdiça­mos em atividades “robóticas” e impessoais, a IA pode ainda restaurar a empatia na relação médico-paciente.

Diante de tamanhos desafios e potenciali­dades, é nesse equilíbrio entre inovação e humanismo que reside uma inédita oportunida­de de oferecermo­s uma assistênci­a mais precisa e inclusiva aos nossos pacientes.

[ Há uma preocupaçã­o crescente de que modelos de inteligênc­ia artificial mal desenhados ou conduzidos possam refletir ou ampliar preconceit­os e vieses humanos ao terem desempenho reduzido em populações heterogêne­as, sobretudo em pacientes do sexo feminino, negros ou de baixo nível socioeconô­mico

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