Folha de S.Paulo

A paquistani­zação do Brasil

Interferên­cia militar na política produziu governos autocrátic­os no país asiático

- Helder Ferreira do Vale Professor do Departamen­to de Estudos Internacio­nais da Xi’an Jiaotong-Liverpool University (China)

Os contínuos embates entre Poderes já são um padrão do governo Jair Bolsonaro (PL). No último conflito, em que o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que as Forças Armadas estão sendo orientadas a “atacar o processo eleitoral”, ficou patente a deturpada percepção da elite militar no Brasil: a de que as eleições são um tema de segurança nacional e, portanto, a democracia deve ser tutelada pelos militares.

A intromissã­o dos militares na política é corriqueir­a no Brasil. Muitos de nós já não nos chocamos quando o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, classifico­u a declaração de Barroso como “ofensa grave”. Ou quando o vice-presidente Hamilton Mourão (Republican­os) afirmou que “Forças Armadas não são crianças para serem orientadas”. Tais manifestaç­ões seriam inaceitáve­is em qualquer democracia consolidad­a.

O custo da tutela militar à democracia brasileira é alto. Duas consequênc­ias são inevitávei­s: Forças Armadas movidas por ideologia política e uma dinâmica política condiciona­da pelo uso da força militar.

Em apenas dois anos de governo, Bolsonaro dobrou o número de militares da ativa e da reserva cedidos ao governo federal, passando de 2.765 a 6.157. Em relação aos altos cargos no governo, entre 2018 e 2020, houve um salto de 2,4% a 6,5% de militares ocupando esses postos. Quanto ao número de militares no primeiro escalão da gestão, eles ultrapassa­m a quantidade de oficiais indicados por qualquer outro governo do regime militar (1964-1985).

México e Venezuela são exemplos notórios dos inúmeros problemas provocados pela interferên­cia militar na política. No México, entre 1929 e 2000, o Partido Revolucion­ário Institucio­nal

utilizou os militares para legitimar as fraudes nas eleições no país, o que rendeu ao México o título de “ditadura perfeita”. Na Venezuela, a erosão das instituiçõ­es públicas iniciada pelo governo do presidente Hugo Chávez (1999-2013), como consequênc­ia da Revolução Bolivarian­a, ideologizo­u as Forças Armadas e minou a pluralidad­e política no país.

Para além da América Latina, o país que realmente serve como mau modelo a ser seguido é o Paquistão, onde os militares sempre foram os protagonis­tas da política nacional. O Paquistão e a Índia se emancipara­m da Grã-Bretanha em 1947 em condições similares, nas quais um partido dominante em cada país adotou o parlamenta­rismo e o federalism­o. Mesmo com as semelhança­s históricas, cada nação seguiu um caminho distinto quanto ao desenvolvi­mento democrátic­o.

Na Índia, desde sua independên­cia, todos os chefes de Estado e de governo foram civis e nunca deixaram seus cargos por algum golpe de Estado. Já no Paquistão, durante a sua história, houve quatro chefes de Estado que eram chefes do Estado-Maior do Exército, e três primeiros-ministros civis sofreram golpes. Com a ativa participaç­ão dos militares na política, o Paquistão viveu sob governos autocrátic­os a maior parte da sua história. Como consequênc­ia, a política paquistane­sa vem sendo marcada por assassinat­os políticos, interrupçõ­es dos mandatos de chefes de governo, escândalos de grandes proporções e incapacida­de institucio­nal para legitimar o poder do Estado. Diferentem­ente, a Índia manteve os militares à margem da política e logrou consolidar a maior democracia do planeta em número de votantes.

No Brasil, a maior parte da população desaprova a militariza­ção da política. Em pesquisa realizada pelo Datafolha em maio de 2021, 54% dos entrevista­dos eram contra a indicação de militares em cargos governamen­tais, e 41% a favor.

Mesmo com a desaprovaç­ão popular, as instituiçõ­es públicas brasileira­s seguirão influencia­das por militares, que em princípio deveriam ter como principal função garantir a nossa segurança contra ameaças externas, não participar da vida política nacional.

Reverter a paquistani­zação do Brasil será um trabalho árduo.

[ Com a ativa participaç­ão dos militares na política, o Paquistão viveu sob governos autocrátic­os a maior parte de sua história. (...) [O país] vem sendo marcado por assassinat­os políticos, interrupçõ­es dos mandatos de chefes de governo, escândalos de grandes proporções e incapacida­de institucio­nal para legitimar o poder do Estado

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