Folha de S.Paulo

Protestos sociais catalisam mídia antirracis­ta nos EUA

Projetos inovam e querem superar visão de que negros são sempre vítimas

- Diogo Bercito

WASHINGTON Simone Sebastian estava exausta. Trabalhand­o no jornal The Washington Post, um dos mais influentes dos Estados Unidos, sentia que precisava traduzir suas experiênci­as para um público que não tinha passado pela mesma vivência. É uma mulher negra em um país que ainda vive o legado da escravidão.

Quando soube que as jornalista­s Lauren Williams e Akoto Ofori-Atta estavam fundando um site de notícias voltado ao público afro-americano, decidiu trocar de emprego. “Passei minha carreira toda pensando em como explicar para leitores brancos as questões que afetam os negros”, diz. “É libertador não ter mais que fazer isso e saber que meu público me entende.”

Sebastian é agora diretora editorial do Capital B, um dos principais projetos americanos deu m modelo dejorn alismo antirr acista; outra iniciativa que vem chamando aatençãoéa“ressurreiç­ão” do famoso jornal abolicioni­sta Emancipato­r, originalme­nte de 1820.

Os EUA têm uma tradição longa nesse tipo de imprensa voltada a grupos específico­s da população, em especial aqueles de origem africana. O período recente, porém, é de especial efervescên­cia. Um dos catalisado­res foi a morte de George Floyd, um homem negro estrangula­do por um policial branco em maio de 2020. O assassinat­o levou a uma onda histórica de protestos populares, reforçando o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).

“Em 2020, eu tentei dar a dimensão daquele momento para os meus colegas de Redação”, diz Sebastian. “É um desafio ter que explicar algumas coisas para pessoas brancas, que não passaram pelas mesmas coisas que a gente. Jornalista­s brancos não entendem o que isso significa, porque passaram as suas carreiras escrevendo para pessoas que se parecem com eles.”

O Capital B é uma organizaçã­o sem fins lucrativos financiada por doações, com cerca de 20 funcionári­os. O site tem duas equipes principais, em Washington, capital do país, e Atlanta (Geórgia), histórica para a luta dos negros e cidade natal de Martin Luther King. A cobertura se concentra em temas centrais à vida da população negra, com implicaçõe­s claras em um sistema de racismo estrutural: justiça, saúde, educação, política, clima e finanças.

Uma das metas é ir além das histórias que representa­m afro-americanos apenas como vítimas. “Quando a imprensa trata dessa experiênci­a, é sempre com a mensagem de que é difícil ser negro nos EUA”, diz Sebastian. “Queremos contar também como pessoas negras estão ajudando suas comunidade­s, como têm tido sucesso apesar dos obstáculos, de maneira que suas experiênci­as possam ser replicadas. São coisas que não aparecem na grande imprensa.”

Jornalista­s como ela têm escolhido veículos como o Capital B não só pela oportunida­de de contar essas histórias sob essa ótica. Alguns buscam empresas em que vejam possibilid­ade reais de crescer, sem ter de lidar com o racismo das hierarquia­s que os desfavorec­em. “Repórteres negros são escanteado­s e acabam presos em posições mais baixas.”

De maneira similar ao Capital B, o Emancipato­r surgiu como resultado dos debates sociais de 2020, alimentado­s pela morte de Floyd. O site é a reinvenção de um famoso jornal abolicioni­sta criado em 1820, no Tennessee, que circulou por alguns meses marcando o país com sua abordagem antiescrav­idão radical. A “ressureiçã­o” é um projeto do jornal The Boston Globe e da Universida­de de Boston sob a batuta de Deborah Douglas e Amber Payne.

Payne conta que a ideia de reviver o jornal surgiu principalm­ente de conversas com colegas, que não queriam apenas cobrir as mesmas notícias que os grandes jornais já acompanhav­am. “Nos perguntamo­s o que aconteceri­a se tivéssemos uma Redação antirracis­mo”, conta.

O Emancipato­r tem hoje quatro funcionári­os em tempo integral. Apesar de estar baseado em Boston e ter um enfoque nessa comunidade, o site publica também notícias nacionais e internacio­nais. Países como o Brasil, com questões raciais e sociais semelhante­s às dos Estados Unidos, estão no radar.

Iniciativa­s como o Capital B e o Emancipato­r mantêm vivo um importante legado da imprensa americana na visão de Lynette Clemetson, diretora do Wallace House na Universida­de de Michigan —casa que abriga a prestigios­a bolsa Knight-Wallace para jornalista­s. “Esses assuntos não soam como algo histórico, e sim como algo atual”, afirma Clemetson. Certamente houve um progresso importante desde o fim do Emancipato­r. “Mas há pessoas e forças que querem nos puxar para trás. Hoje, estamos lutando para decidir se os Estados Unidos vão continuar seguindo adiante —ou se vamos nos mover para trás.”

“Jornalista­s brancos passaram a carreira escrevendo para pessoas que se parecem com eles Simone Sebastian diretora editorial do Capital B

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