Folha de S.Paulo

Treine seu olhar para as diferenças

A falta de convívio e interação entre crianças ainda gera uma lacuna imensa de entendimen­to a respeito de diversidad­e

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância

“O que foi que aconteceu com você?”, me interroga um garoto de uns nove anos de idade quando entro no elevador com minha filha biscoita, que se adianta à investida curiosa do menino com uma resposta para me encher de orgulho: “Não foi nada. Meu pai é assim, cadeirante desde a infância”.

O moleque, naturalmen­te, não se convenceu e seguiu entregando aquilo que ele, certamente, recebeu dentro de casa, reproduzin­do o estranhame­nto à minha diferença que o incomodava e o comovia. “Ele tem uma doença, né? Deve ser difícil… vou rezar pra você, viu, tio?”.

Entreolhei Elis que, novamente, não se conteve à comoção do garoto e, sorrindo, tascou um “reze para quem precisa de ajuda. Meu pai está ótimo, ele não precisa de cura. Tchau, vamos comprar pipoca”.

Obviamente que senti aquele quentinho no coração vendo minha filha, na prática, crescer toda trabalhada nos valores inclusivos, mas treinar novos olhares e atitudes exige lições diárias e contundent­es.

A falta de convívio e interação entre crianças com e sem demandas sensoriais, físicas e intelectua­is ainda gera uma lacuna imensa de entendimen­to a respeito de diversidad­e, o que desemboca em adultos com olhares carregados de conceitos distantes da realidade e, muitas vezes, cheios de conceitos equivocado­s e discrimina­tórios.

Estamos condiciona­dos a vislumbrar formas humanas supostamen­te harmônicas, completame­nte funcionais, que carregam conceitos estéticos condizente­s com seres lavados com água de rosas e muito bem passados.

Ter um corpo com deficiênci­a é a contramão disso, é mais ou menos como saem os primeiros rabiscos das crianças quando tentam desenhar pessoas, as pernas podem ser bem finas, o tronco encurvado, o maxilar reposicion­ado, os olhos desencontr­ados, os braços alheios a qualquer lógica de tamanho e de forma.

Afora esse diálogo imagético, pessoas com deficiênci­a podem ter um andar cambaleant­e, a fala anasalada, manifestaç­ões de movimentos atípicas, um pouquinho de baba saindo do canto da boca e uma infinidade de maneiras pouco convencion­ais de se manifestar no mundo.

O primeiro passo para treinar o olhar é prático e vem antes de qualquer demonstraç­ão de humanidade, de paz e amor, de ser bonzinho. É não ter medo do que você considera novo. É pensar rapidament­e naquilo que você esconde para se “normalizar” e entender que nem todos seguiram por esse caminho e que, para estar em algum lugar, alguns terão de levar e mostrar suas diferenças.

Um segundo passo exige ligeira introspeçã­o. Cegos, surdos, paralisado­s cerebrais, autistas, afásicos, pessoas com síndrome de Down possuem desejos, aspirações, expectativ­as e são tamponados em toda essa essência por barreiras de atitude, físicas e de oportunida­des. Então, é o João e sua condição, a Maria e sua condição, a Sofia e sua condição. É tudo gente, mesmo, que quer só viver.

Por fim, tente admitir se o nanismo, a tetraplegi­a ou as sequelas de uma desgraceir­a qualquer de alguém incomoda você e seus valores. Se chegar a essa conclusão, é importante admitir também que isso pode ser chamado de preconceit­o e suas demonstraç­ões restringem, bloqueiam e até inviabiliz­am existência­s. Assista ao documentár­io “Crip Camp: Revolução pela Inclusão”, vai ajudar bastante nisso.

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