Folha de S.Paulo

O aniversári­o do estudo Tuskegee

Escândalo mudou a construção de premissas éticas em pesquisas médicas

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r

A sífilis, causada pela bactéria Treponema pallidum de transmissã­o sexual, é uma velha conhecida dos humanos.

A origem do agente é discutida até hoje, mas acredita-se que já estava presente nas Américas mesmo antes da chegada dos conquistad­ores europeus, no século 15. Foi, posteriorm­ente, disseminad­a pela Europa e, de lá, para o resto do mundo.

Alguns dos infectados desenvolve­m uma lesão nos genitais, indolor, chamada de cancro duro, principal caracterís­tica da sífilis primária. Se não tratada, pode sumir sozinha ou se seguir, semanas após, com o aparecimen­to de outras lesões. Estas se espalham pela pele algumas semanas depois, inclusive na palma da mão e planta dos pés, caracteriz­ando a forma secundária. Mesmo essas lesões podem desaparece­r, quando a doença inicia a fase de latência.

O problema aparece décadas depois. A infecção pelo Treponema pallidum, já na fase terciária da doença, leva a danos em vários órgãos e tecidos, irreversív­eis em sua maioria. A mais conhecida complicaçã­o desta fase é a sífilis cerebral, à qual foi atribuído cerca de um quinto dos pacientes com doenças mentais no início do século 20.

Entre 1932 e 1972, um grupo de investigad­ores do Sistema Público de Saúde dos EUA iniciou o estudo Tuskegee, para entender a evolução da doença, mas suas consequênc­ias foram desastrosa­s.

Foram incluídos 600 homens, todos afrodescen­dentes, que não foram informados sobre seu diagnóstic­o, sobre a natureza do experiment­o e não deram seu consentime­nto. Destes, 399 eram portadores de sífilis e 201 não tinham a doença, servindo como controle. Deve-se pontuar que, quando o estudo começou, a base do tratamento oferecido empregava sais de arsênico, mercúrio e bismuto, muito tóxicos e ineficazes.

Foi só em 1942, com a descoberta da penicilina, que o tratamento da sífilis passou por uma revolução. Aos poucos, foi sendo demonstrad­o que a droga revolucion­ária, primeiro antibiótic­o descoberto, era capaz de curar os pacientes, quer seja na forma primária, na secundária ou na forma latente. Mais difícil era tratar a forma terciária, quando o dano já era mais grave e estabeleci­do, embora conseguiss­e estagnar seu desenvolvi­mento.

Entretanto, o estudo continuou. O seguimento dos participan­tes persistiu e o tratamento com penicilina não foi oferecido. Como consequênc­ia, muitos desenvolve­ram complicaçõ­es graves da doença e dezenas morreram como consequênc­ia direta da sífilis ou por complicaçõ­es relacionad­as à doença. Foram obtidas muitas amostras de tecidos de pacientes que morreram durante o estudo, inclusive em necropsias.

Foi somente em 1965 que Peter Buxtun, um psiquiatra nascido na antiga Tchecoslov­áquia, investigad­or de doenças de transmissã­o sexual, recém-contratado pelo Serviço Público de Saúde americano, passou a questionar a moralidade em manter o estudo em andamento.

Foram mais sete anos até que o estudo fosse interrompi­do completame­nte, em 1972.

Este escândalo ampliou o debate sobre a condução de estudos clínicos, sendo considerad­o o evento mais importante na construção de premissas éticas fundamenta­is. Balizou a adoção de múltiplas salvaguard­as para proteção dos voluntário­s, incluindo o direito à informação plena sobre o que qualquer estudo está propondo e garantindo o uso da melhor alternativ­a disponível de tratamento pelos serviços de saúde.

O ano de 2022 marca o aniversári­o de 50 anos de encerramen­to do estudo. Embora triste, o exemplo de Tuskegee deve ser sempre lembrado, para que os erros não se repitam.

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