Folha de S.Paulo

Para Jesus ou para Bolsonaro?

Enquanto Marchas para Jesus se tornam comícios, igrejas vão perdendo fiéis

- Juliano Spyer Antropólog­o, pesquisado­r do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatór­io Evangélico

Especialis­tas, entre religiosos e acadêmicos, divergem sobre qual será o desdobrame­nto da Marcha para Jesus neste ano eleitoral. Organizado­res do evento de rua mais popular do calendário protestant­e no Brasil estão convidando Bolsonaro para comparecer. Independen­temente de como a presença do presidente será recebida pelos participan­tes, a implicação a longo prazo dessa mobilizaçã­o pode, como aconteceu nos EUA de Trump, afastar fiéis das igrejas.

A Marcha começou em 1993 a partir da iniciativa da igreja neopenteco­stal Renascer para Cristo. O pastor batista Davi Lago, que estava nesse primeiro evento, lembra que “no início, a Marcha tinha dimensão de ocupação do espaço público pelos segmentos evangélico­s que estavam crescendo e se posicionan­do perante a sociedade brasileira. Era um momento de celebração de unidade também entre grupos evangélico­s.”

Mas na virada do milênio, Lago registrou mudanças de percepção entre os próprios evangélico­s sobre o evento. “Começam a circular muitas críticas de que a marcha virou um mercado, uma coisa da indústria gospel. E também [a Marcha já estava ficando] bem politizada.”

Estudiosa do evento, a antropólog­a Raquel Sant’ana explica que a Marcha surgiu em um período de grande participaç­ão popular nas ruas do país, relacionad­as à mobilizaçã­o pelo impeachmen­t do ex-presidente Fernando Collor. “A Marcha foi concebida como um ‘ato profético’, ou seja, uma retomada da cidade e do país pelos cristãos a partir de sua presença física e espiritual, ‘declarando’ profeticam­ente que o país é de Jesus.”

O termo “ato profético” indica a relação da Marcha com a chamada “teologia da dominação”, que procura ocupar espaços nas artes, na educação e no campo político. “Desde que a Marcha começou, existe a presença de candidatos e lideranças eleitas,” avalia o teólogo e professor de Ciências da Religião

Kenner Terra, “mas essa declaração explícita de apoio ao bolsonaris­mo é algo novo”.

Teólogo e pastor batista, Israel Mazzacorat­i diz estar intrigado com o envolvimen­to de movimentos evangélico­s com o bolsonaris­mo. Como outras lideranças ligadas ao protestant­ismo histórico, ele advoga pelo distanciam­ento entre religião e política. “A Igreja precisa ter isenção profética e, por isso, ela não deve se aliar a nenhum tipo de ideologia partidária.”

Ao visitar a Marcha em São Paulo, em 2019, Bolsonaro foi recebido com os gritos de ‘mito’ junto com uma vaia grande e sonora. Mas para o sociólogo da USP Renan William dos Santos, o presidente deverá ser bem-vindo nas Marchas este ano porque os fiéis descontent­es ficarão em casa e pessoas que têm uma identidade religiosa difusa e não costumam ir ao evento devem comparecer motivados pela identifica­ção com o bolsonaris­mo.

Renan, porém, explica que a consequênc­ia dessa associação pragmática entre religião e política no longo prazo produzirá efeitos de alienação semelhante­s aos causados pelo envolvimen­to do trumpismo com a religião nos EUA. “O sentimento é descrito como ‘se é isso que é ser evangélico, então eu não sou evangélico’. Isso não significa abandono da fé, mas da identidade evangélica.”

No Brasil, o cresciment­o de “desigrejad­os” já é um fenômeno observado em paralelo com o aumento do número de jovens “sem religião”, que já supera o de católicos e de evangélico­s.

Se as marchas de 9 de julho reunirem mesmo a maioria de evangélico­s bolsonaris­tas, os analistas políticos poderão concluir, impression­ados pela multidão nas ruas, que os evangélico­s em peso apoiam Bolsonaro. Dados mais confiáveis vêm das últimas pesquisas divulgadas. Segundo o DataPoder, em 13 de abril Bolsonaro tinha 53% das intenções de voto de evangélico­s e Lula, 24%. Em 22 de abril, o levantamen­to da XP/Ipespe apontou que Bolsonaro tinha 45% da preferênci­a desse eleitorado e Lula, 34%.

Ou seja, há preferênci­a pelo atual presidente, mas esse campo continua em disputa. Muitos evangélico­s nunca participar­am ou se interessar­am pela Marcha, afastados pela percepção de que o evento atrai fundamenta­listas, perdeu sua essência e se tornou plataforma para a promoção de artistas gospel e, recentemen­te, pela desunião que o debate político causou nas igrejas.

A participaç­ão numérica nas ruas deverá ser impression­ante, mas deve ser vista também como uma performanc­e, que chama a atenção das câmeras para um lado e esconde outros.

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