Folha de S.Paulo

Pirandello com circo e rock reflete o caos atual

‘Henrique 4º’, do dramaturgo italiano, ganha montagem de Gabriel Villela sobre fronteiras entre a loucura e a lucidez

- Marina Lourenço

Como uma marionete humana, um homem com nariz de palhaço à frente de cavalos em miniatura é controlado por cordas enquanto discursa sobre sonhos, fantasias e lucidez. Rodeado por uma trupe, que veste roupas de tom fantasmagó­rico, o personagem descreve a trama que ele e os demais encenarão em instantes.

Em seguida, os graves eletrônico­s e vocais de “The Hall of Mirrors”, do Kraftwerk, dão largada à apresentaç­ão. A letra, que descreve um homem apaixonado pela própria imagem distorcida, serve bem como prefácio da peça.

Numa montagem circense, “Henrique 4º”, do italiano Luigi Pirandello, toma o palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, sob direção do mineiro Gabriel Villela, que traz um jogo cênico repleto de dicotomias filosófica­s.

O espetáculo se debruça sobre sátiras, num estilo melodramát­ico e brincalhão, o que, segundo Villela, é um acréscimo ao que o próprio Pirandello já propõe em seu texto.

“A peça por si só já tem uma linguagem não convencion­al, que bagunça dois espaços distintos”, afirma ele, em referência à encenação, que mescla os formatos do palco italiano e da arena grega.

Narrada pela fictícia companhia itinerante Francisco Eugydio do Calvári, a história de “Henrique 4º” fala de um jovem nobre que enlouquece a caminho de uma festa carnavales­ca. Ao cair do cavalo, num acidente cercado de mistérios e suposições, o personagem bate a cabeça e perde de vez a sanidade —que já não andava boa desde que ele descobriu o romance entre seu melhor amigo, Belcredi, e sua própria mulher, Matilde.

Louco, o personagem —vivido por Chico Carvalho— passa, então, a acreditar que é Henrique 4º, do Sacro Império Romano-Germânico, o que gera uma enxurrada de piadas e confusão entre os verdadeiro­s membros da corte.

A loucura, porém, não é eterna, e tempos depois ele cai em si. Mas continua a sustentar a carapuça de maluco, jurando de pés juntos ser o tal imperador e enganando a todos ao seu redor.

Na montagem de Villela, os atores não são os únicos a contar a história, e sucessos musicais —cantados em inglês e italiano— compõem a trilha dramática, com letras que muito têm a ver com o roteiro.

É o caso de “Bohemian Rhapsody”, do Queen, “Bang Bang (My Baby Shot me Down)”, de Nancy Sinatra, “Canzone Arrabbiata”, de Nino Rota, e “Lascia ch’Io Pianga”, de Händel. “Quis usar o rock na peça como uma estrutura transgress­ora da melodia”, afirma Villela.

O diretor comenta também sua experiênci­a com o circoteatr­o —tão marcante em “Henrique 4º”—, sobre o qual já havia se debruçado anteriorme­nte, como em “Os Gigantes da Montanha” —peça também de Pirandello—, em 2013.

“A verdade é que o circoteatr­o teve uma função importantí­ssima na história do teatro brasileiro e levou espetáculo­s clássicos de cidades como o Rio de Janeiro para outros cantos do Brasil.”

Em “Henrique 4º”, os elementos circenses surgem de maneira irônica, com cores opacas e cenas que flertam com o mórbido e o cômico, assim como as tantas outras dualidades que competem entre si na história, sendo a loucura e esperteza a principal delas.

“Essa peça é um alerta. Ela fala do nosso tempo. É sobre o perigo de se deixar cooptar por um maluco que tem domínio de uma retórica agradável, ou assustador­a, que chama a atenção de todos e cria um rebanho para si”, diz o ator Chico Carvalho. “É como se Pirandello tivesse visto o governo brasileiro atual para escrever a peça.”

Henrique 4º

Sesc Vila Mariana - r. Pelotas, 141, São Paulo. Qui. a sáb., às 21h. Dom. e feriados, às 18h. Até 5 de junho. R$ 20 a R$ 40. 14 anos

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João Caldas/Divulgação Chico Carvalho e Rosana Stavis em cena da montagem da peça ‘Henrique 4º’, dirigida por Gabriel Villela

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