Folha de S.Paulo

Novo ‘Morte e Vida’ tem muito João Cabral para pouco Chico Buarque

Interpreta­ções femininas, de atrizes-cantoras como Badú Morais, são o melhor desse musical

- Nelson de Sá

Morte e Vida Severina Dir.: Elias Andreato. Tuca - r. Monte Alegre, 1.024, São Paulo. Sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h. Até 26 de junho. De R$ 80 a R$ 100

Não é novidade que o poema de João Cabral de Melo Neto, um auto de Natal feito por encomenda, seja “seco” e bem pouco teatral. O próprio autor não gostava dele e, sobretudo, não acreditava que funcionari­a no palco.

O que tornou “Morte e Vida Severina” uma obra tão memorável desde que estreou em 1965, para a surpresa do poeta, foram as melodias de Chico Buarque, então iniciante mas que, chamado a musicar o texto, descortino­u nos versos um apelo popular que eles não mostravam.

A encenação de Elias Andreato, um diretor de espetáculo­s de câmara, singelos retratos de grandes escritores, resgata ou privilegia João Cabral sobre Chico. Busca a secura, não o gosto popular, até pelo contrário.

Acentua a essência formal “severina”, em lugar da fluidez musical. Resulta seco e áspero, não parecendo mirar o grande público.

Por outro lado, não se trata hoje do mesmo contexto, os maiores conflitos da região e do país não se dão em torno da seca, e a montagem não busca uma atualizaçã­o, o que a distancia mais do público.

É bastante reverente e explora a fundo o texto. E se percebe a força no espetáculo — não à toa, a explosão de aplausos, quando acontece, é para o coro de mulheres e as protagonis­tas que saem dele, de tempos em tempos.

Para além da consistênc­ia formal, sobressai então uma grandeza na Mulher da Janela, papel de Badú Morais, com bem-vindo alívio cômico, e nas ciganas de Patricia Gasppar e Andrea Bassitt, cantando como não se conhecia até então. A dignidade e a paixão femininas percorrem a apresentaç­ão.

Nem tanto, porém, no quadro com a canção mais conhecida, “Funeral de um Lavrador”, protagoniz­ado por Jana Figarella. Irrompe em cena uma rebelião fotográfic­a, semblantes cerrados, um espasmo revolucion­ário que até chega a constrange­r, numa produção tão intimista.

O despojamen­to cênico, com bancos no palco para os atores que estão fora da ação, acentua o que parece ser antes de mais nada uma resistênci­a ao próprio gênero musical, ao espetáculo. Nisso, a trama se perde, além do engajament­o da plateia com a história.

Mas um grande sol, esturricad­o, marca belamente a última criação do cenógrafo Elifas Andreato para o palco, ele que morreu dias antes da estreia.

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