Folha de S.Paulo

Preguiça e paixão

Bolsonaro ganhou um aliado insuspeito, a nossa exaustão

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

Que ano esquisito. Além das máquinas de disparo de notícias falsas e do Exército louco pra melar a eleição, Bolsonaro ganhou um novo aliado: nosso cansaço.

No começo do governo Bolsonaro, ficava preocupado com odiar demais uma pessoa. Como é ruim acordar todos os dias tendo a pessoa mais desprezíve­l do país ocupando seu cargo mais alto. Isso não deve fazer bem, pensava.

Hoje o que me preocupa é o contrário. Sinto que já não consigo odiar Bolsonaro o suficiente. Pelo menos não o tanto que ele merece. Já não consigo me enojar com o mesmo vigor.

A mesma fala que já me deu vontade de vomitar hoje soa como o “Parabéns pra Você” da Xuxa, a estátua da liberdade do New York City Center, o obelisco de Ipanema, tudo o que a gente já odiou um dia mas acabou se acostumand­o.

É natural: o ódio vai perdendo viço, como acontece com a paixão. A revolta, como todo sentimento, tem data de validade.

Ninguém consegue ficar puto com a mesma pessoa por tanto tempo. Começamos todos revoltados com a inépcia do sujeito. Passamos a odiar sua incompetên­cia. O ódio se transformo­u em desprezo profundo pela sua desumanida­de. E esse desprezo, tenho a impressão, cada dia mais toma forma de preguiça.

Perdemos aquele tesão do ódio novo, recém-adquirido. Passamos por tudo: gestão desastrosa da pandemia, rachadinha­s familiares, funcionári­os fantasmas, volta da inflação, promessas de golpe. Nada mais faz efeito. Os novos escândalos não viralizam, logo se misturam a um mar de tragédias e trambiques que não deram em nada.

Já não clico em nada que tenha seu nome. Evito encontrar pessoas que gostem de falar dele. Sinto que já descobrimo­s tudo o que ele tinha de podre. Não tem nada nele que possa me surpreende­r. “Viu a última do Bolsonaro?” Não vi, mas consigo imaginar, obrigado.

A única coisa que tem nos tirado da indiferenç­a é um amor novo, recém-descoberto —por um velho conhecido. A paixão por Lula faz do eleitor um sujeito que escreve seu nome no vapor do box, na sujeira dos para-brisas, na rede wi-fi. Não sei quando foi que aconteceu.

Se foi na prisão injusta, na saída da cadeia, naquele discurso do Zé Gotinha —em algum momento preciso Lula nasceu de novo e permitiu que projetásse­mos nele tudo aquilo que esperávamo­s de um presidente.

Haverá quem tente avisar: “Vocês estão se iludindo”. Claro que estamos. E quem não estiver se iludindo, nem que seja um pouquinho, não sabe o que está perdendo.

| dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

 ?? Catarina Bessel ??
Catarina Bessel

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil