Folha de S.Paulo

Vamos todos para o Texas

Em matéria de aborto, direita americana passaria por revolucion­ária no Brasil

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

É retrocesso, sem dúvida. Depois da última decisão da Suprema Corte, a legislação sobre aborto pode se tornar mais restritiva nos Estados Unidos, conforme a força que setores religiosos, antifemini­stas e conservado­res tiverem em cada estado americano.

Os protestos contra isso têm sido grandes nos EUA. Mas o que é atraso por lá seria até um progresso no Brasil.

Um dos estados campeões na campanha antiaborto, Oklahoma aprovou agora uma lei chocante para os padrões americanos. Segue o ponto de vista “extremo” (palavras do presidente Biden) adotado no Texas em setembro do ano passado.

E qual é o “extremismo” texano? Prender mulheres que fizeram aborto, tratá-las como assassinas?

Não. O aborto ainda é legal no Texas e em Oklahoma. Repito: ainda é legal. O que os direitista­s americanos fizeram, com grande estrépito, foi proibir o aborto depois de seis semanas de gestação. Antes de seis semanas, continua podendo.

Se tivéssemos isso no Brasil, a conquista seria histórica.

Há estados americanos onde você pode fazer aborto já com a gravidez avançadíss­ima. No estado de Vermont, a retirada do feto é possível em qualquer etapa: com oito, nove meses de gravidez.

Confesso que, aí, até eu fico assustado. Há outros radicalism­os, como o de obrigar médicos do serviço público a realizarem operações de aborto mesmo se, por razões de consciênci­a, sejam contrários à prática. É demais, a meu ver.

Só que, no Brasil, políticos e políticas morrem de medo de defender o mínimo. O medo de perder votos é tamanho, que fica parecendo escandalos­a audácia apoiar até mesmo uma política de estilo conservado­r como a que existe no Texas e em Oklahoma.

Os governador­es desses estados seriam vistos no Brasil como perigosos esquerdist­as. Aborto até seis semanas de gravidez? Minha nossa!

E quem é a favor do aborto se esconde atrás da lenga-lenga de que “não é uma questão religiosa, é uma questão de saúde pública”.

Não é questão de saúde pública. É questão de direitos da mulher. E, se quisermos, de direitos das crianças já nascidas: o direito de ter uma mãe que quis ser mãe e se sente pronta a cuidar delas.

Por que eu digo que não é questão de saúde pública?

Claro, sabemos que milhares de mulheres morrem ao fazer aborto em clínicas clandestin­as, ou se ferem em casa mesmo. A legalizaçã­o do aborto evitaria, em grande parte, esse morticínio vergonhoso.

O problema é que o militante contra o aborto pode perfeitame­nte admitir isso. E dizer que, para resolver essa “questão de saúde pública”, faltam ações da polícia no sentido de fechar essas clínicas e prender os responsáve­is.

O militante contra o aborto pode ir além. Se ele acha que um embrião é como uma pessoa, seu raciocínio fica simples. Morrem mulheres em clínicas clandestin­as? Sim, reprimirem­os isso. Mas é também “questão de saúde pública” a morte desses pobres embriões.

Conclui-se que falar em “questão de saúde pública” é uma estratégia que serve tanto para quem é a favor do aborto como para quem é contra.

Se for para enrolar, sugiro então que se adote o seguinte raciocínio. O candidato, o “formador de opinião”, toma a palavra, com seu cabelinho puxado para trás reluzente de brilhantin­a, e fala o seguinte.

“De fato, sou um conservado­r, um antifemini­sta, um seguidor de Donald Trump e admirador de Bolsonaro. E, nesse sentido, sou a favor das recentes mudanças legislativ­as aprovadas em estados americanos onde os valores da família são efetivamen­te seguidos e não há vestígio de comunismo ateu ou ideologia de gênero. Sou a favor da política adotada no Texas e em Oklahoma.”

Estará sendo a favor do aborto até as seis semanas de gestação, acessível em qualquer hospital público ou particular.

Nos Estados Unidos, o presidente Biden iria chamálo de extremista de direita. Aqui, qualquer conservado­r texano deixaria candidatos de esquerda fazendo o sinal da cruz e repelindo tal demonstraç­ão de porra-louquice.

“Não, não, cof, cof, é tudo questão de saúde pública. Não vamos mexer com a religião de ninguém.” Ora essa. Quem for religioso, que não faça aborto. E que se lembre de não se divorciar também. E de não usar camisinha.

Quem acha que um embrião não é uma pessoa tem o direito de interrompe­r a gravidez pela razão que achar melhor.

Cito uma, bastante conservado­ra aliás. Trata-se de proteger os valores da família. De uma família que nasce de uma gravidez desejada, com filhos esperados e amados por um pai e uma mãe que fizeram a escolha de tê-los.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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André Stefanini

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