Folha de S.Paulo

Marilyn Monroe de Andy Warhol a R$ 1 bilhão é um signo de angústia

Desbancand­o Picasso como obra mais cara do século 20, retrato da celebridad­e mostra saudades do glamour que passou

- Silas Martí

Que o mundo da arte pode ser um circo, sabemos —um circo de endinheira­dos que gostam de exibir suas plumas e paetês. O alvoroço em torno do recorde recém-batido por um retrato de Marilyn Monroe criado por Andy Warhol, arrematado por mais de R$ 1 bilhão —US$ 195 milhões— e agora a obra de arte mais cara do século 20 a ser leiloada, dá a dimensão do espetáculo.

Nas semanas antes da venda da Christie’s, nesta segunda em Nova York, os marqueteir­os da casa de leilões já prometiam o sucesso da tela.

Estava mais do que claro para eles que Warhol e a maior diva da Hollywood dourada desbancari­am a recordista até aqui, “Les Femmes d’Alger”, de Picasso, vendida em 2015 por US$ 179,4 milhões. Marilyn também venceu Jean-Michel Basquiat na queda de braço pelo troféu de obra mais cara de um artista americano, batendo com folga os US$ 110,5 milhões pagos por sua pintura de uma caveira há cinco anos.

De fato, o momento era propício para se vender uma Marilyn Monroe. Na semana passada, a socialite Kim Kardashian usou o vestido da atriz, o look escolhido por ela para cantar “Happy Birthday” ao presidente John Kennedy, no Met Gala, outra dessas palhaçadas do mundo das celebridad­es que se tornou mina de ouro de “likes” e engajament­o, o ópio dos nossos tempos.

O mundo parece querer reviver a todo custo a euforia e o glamour de uma era que passou, esquecendo, é claro, a morte trágica da atriz vítima de uma overdose de barbitúric­os em circunstân­cias até hoje um tanto nebulosas.

Nosso trauma coletivo atual, uma pandemia ainda em curso e uma guerra brutal na Europa, se esconde sob o verniz cintilante da aura de Marilyn e dos cifrões que agora brilham como neons ao redor da tela.

Mas a tragédia é inescapáve­l. Warhol, com sua “Shot Sage Blue Marilyn”, de 1964, bateu seu recorde anterior, os US$ 105 milhões pagos em 2013 por “Silver Car Crash (Double Disaster)”, uma serigrafia mostrando um desastre automobilí­stico em tons de prata reluzente, feita em 1963. Antes disso, o detentor de seu pódio era uma série com oito figuras de Elvis Presley repetidas, seus “Eight Elvises”, de US$ 100 milhões.

Divas e astros, assim como tragédias e caos, atravessam a obra do artista pop, sem dúvida um dos nomes mais brilhantes da história da arte. Mas sua Marilyn de R$ 1 bilhão parece revelar mais do que esconder nossa angústia atual.

Essa mesma tela agora consagrada tem outra anedota trágica por trás. O “shot” do nome do quadro remete ao episódio em que uma mulher invadiu o ateliê de Warhol em Manhattan e abriu fogo contra as pinturas —a bala não atingiu esta em questão, a Christie’s teve o cuidado de esclarecer.

Diante da obra sã e salva, os analistas de mercado falam de sua venda como um termômetro do mercado, ou seja, “Quanto Mais Quente Melhor”, já dizia o filme de Billy Wilder estrelando a diva que volta a ganhar as manchetes.

O circo do mercado de arte —vale lembrar o lamentável episódio da obra de Banksy triturada em pleno leilão há quatro anos— é hábil em criar novas bolhas, novos pontos de distração, novas sensações. Warhol, já morto, agora é só fonte de lucro para quem coleciona suas obras e em nada carece de mais valorizaçã­o.

Mas o fato de Warhol ter desbancado Picasso do pódio também diz muito sobre onde estamos como civilizaçã­o em termos de gostos e valores.

As “Femmes d’Alger” do artista espanhol, uma das 15 telas da mesma série, traduziam por um prisma cubista a obra do romântico Delacroix. Eram vanguardas colidindo num momento antes de serem superadas, relegadas ao plano mais longínquo da história, ao que parece pelo menos pelas mãos do mercado.

O artista que previu 15 minutos de fama para todos, hoje reinventad­os nos 15 segundos das dancinhas do TikTok ou vídeos de Instagram do mundo dos influencer­s, mostra que segue no páreo por muito mais tempo. E o R$ 1 bilhão rendido por sua Marilyn Monroe mostra que a celebridad­e está acima de tudo, ou talvez que nunca precisamos tanto de uma distração, de preferênci­a com poder de choque, purpurina e luzes que brilham ao ponto de causar a mais inebriante das cegueiras.*

 ?? Reprodução ?? Detalhe de ‘Shot Sage Blue Marilyn’, tela de Andy Warhol leiloada por R$ 1 bilhão
Reprodução Detalhe de ‘Shot Sage Blue Marilyn’, tela de Andy Warhol leiloada por R$ 1 bilhão

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