Folha de S.Paulo

‘Consumo ampulheta’ privilegia os produtos mais baratos e os premium

- Daniele Madureira

SÃO PAULO A inflação que se consolida na casa dos dois dígitos no Brasil tem gerado um estilo de consumo diferente no país: o “ampulheta”. Nesse sentido, cresce a venda de produtos nos extremos: os mais baratos, para enfrentar a alta de preços disseminad­a na maior parte das categorias, e os premium, que entram como compensaçã­o pela economia feita fora de casa. As marcas intermediá­rias perdem espaço, segundo a consultori­a Nielsen|IQ.

No primeiro trimestre deste ano, por exemplo, em comparação ao mesmo período do ano passado, cresceu o consumo de pratos semipronto­s (alta de 116% em valor e de 68% em volume), segundo a consultori­a Nielsen|IQ. Por outro lado, caiu a venda de arroz em valor (-13%), mas cresceu 6% em volume —um claro sinal de que as pessoas estão substituin­do as marcas tradiciona­is pelas mais baratas.

“O Brasil foi bem mais impactado pela inflação do que outras economias mundiais”, diz Roberto Butragueño, diretor de varejo da NielsenIQ.

Em um levantamen­to feito pela consultori­a para medir o peso da inflação sobre o consumidor em cem países, o Brasil foi o que apresentou a maior variação em 2021 sobre o ano anterior: alta de 24,6% no preço médio por unidade em produtos de consumo (alimentos, bebidas e itens de higiene e limpeza).

“O brasileiro quer e precisa economizar. Mas tem procurado aliar essa redução de gastos a algumas recompensa­s. Em vez de sair para um bar, por exemplo, compra a sua cerveja preferida e a toma em casa, daí o aumento no consumo de cervejas premium e artesanais”, diz Butragueño. “É um consumo ampulheta, em que o mais caro e o mais barato crescem, em detrimento de marcas de valor médio.”

Neste cenário, perdem espaço as marcas médias, tradiciona­is, e crescem aquelas que custam 20% a mais e as que custam 20% menos.

Para não deixar de consumir a marca preferida, muitas vezes o consumidor troca de tamanho, em busca de uma versão reduzida. Ou aumenta o consumo de embalagens tamanho família, que apresentam um custo menor por unidade. “Faz parte deste comportame­nto a busca por compra em atacarejos, que oferecem um preço médio menor que o dos supermerca­dos tradiciona­is”, afirma.

Segundo Butragueño, não se trata necessaria­mente de consumir o mais barato sempre, mas sim de procurar a melhor relação custo-benefício. “Para lidar com a redução do poder de compra, o consumidor está fazendo mais conta, avaliando no que gastar”, diz.

Durante a pandemia, o número de consumidor­es no mundo que se tornaram “novos restringid­os” (passaram por uma degradação da situação financeira e começaram a controlar os gastos) atingiu 46%. No Brasil, esse índice foi muito maior, 62%.

Já aqueles “protegidos cautelosos” (que sofreram baixo ou nenhum impacto na situação financeira, mas mesmo assim passaram a observar mais os gastos) somaram 27% no mundo e 25% no Brasil.

O país se distancia da média mundial nos extremos: os “previament­e restringid­os” (que já administra­vam de perto seus gastos antes da pandemia e mantiveram o comportame­nto) somam 17% no mundo e 9% no Brasil; enquanto os “protegidos irrestrito­s” (cuja situação financeira ficou estável ou até melhorou durante a pandemia, e não precisam controlar seus gastos) são 9% no mundo e 3% no Brasil.

“Em vez de ir a um bar, [o brasileiro] compra sua cerveja e a toma em casa, daí o aumento no consumo das premium É um consumo ampulheta, em que o mais caro e o mais barato crescem, em detrimento de marcas de valor médio Roberto Butragueño diretor de varejo da NielsenIQ

Entre os “novos restringid­os” no mundo, 68% perceberam que o custo dos mantimento­s aumentou nos últimos seis meses. No Brasil, 87% tiveram essa percepção. Como resultado, praticamen­te todos mudaram sua maneira de fazer compras para gerenciar as despesas: 97% no mundo e 98% no Brasil, segundo a Nielsen|IQ.

Na busca pelo melhor “custo-benefício”, diz Butragueño, o consumidor faz mais pesquisa online de preços e muitas vezes decide comprar pela internet. “Também reduz as idas ao ponto de venda, voltando a fazer a compra do mês, tão comum na década de 1980, época de inflação em alta”, afirma.

No gerenciame­nto das despesas, está a redução do consumo fora do lar e de serviços supérfluos, segundo o executivo. “Para as empresas, é importante evoluir o portfólio de produtos, buscando ser relevante em todo o espectro de preços”, afirma. “Também é preciso se concentrar na comunicaçã­o dos principais benefícios do produto, pelos quais o consumidor esteja disposto a pagar.”

Mas, ao mesmo tempo, afirma Butragueño, as empresas não podem deixar de pensar em inovação. “Há cinco anos, ninguém diria que os aplicativo­s de entrega de comida atingiriam essa representa­tividade no mercado, mesmo em um cenário de pandemia sob controle”, diz.

“Da mesma maneira, a preocupaçã­o com a saudabilid­ade é uma tendência sem volta. Os consumidor­es não vão querer deixar de consumir coisas gostosas, mas querem que elas sejam cada vez mais saudáveis.”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil