Folha de S.Paulo

O pandemônio que vem por aí

Campanha eleitoral promete revaloriza­r uma palavra de origem erudita

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Pode ser um daqueles truques que a memória nos prega, mas me lembro que, na bolha da minha infância mineira, a palavra “pandemônio” tinha ampla circulação.

Não é que o mundo que eu habitava fosse especialme­nte confuso ou cacofônico. Comparado ao de hoje, tinha uma simplicida­de de três acordes da Jovem Guarda —que, aliás, lhe providenci­ava a maior parte da trilha sonora.

O que acontecia era que, nas asas eternas da hipérbole, do exagero, do drama, o pandemônio era invocado para qualificar desordens mínimas. Por exemplo, a de um quarto de criança com dois gibis do Pato Donald, três carrinhos Matchbox e um pé de Kichute largados no chão.

“Olha o pandemônio! Aposto que o Felipe Augusto não deixa o quarto dele nesse estado.” Se bem que, pensando melhor, eu nunca tive um conhecido chamado Felipe Augusto. A memória deve estar mesmo me pregando peças.

Só muitos anos depois aprendi que o pandemônio, termo tão corriqueir­o, tinha uma origem não apenas literária, mas enraizada na alta cultura. Era um termo erudito, eruditíssi­mo, que havia caído na vida. Como?

Não é tão simples desvendar esse como porque rola no mundo dos vocábulos uma clara tendência ao pandemônio. O que podemos fazer no caso é reconstitu­ir com relativa segurança a fonte primária da palavra —e isso não é pouco.

Os etimologis­tas, que não gostam muito de concordar uns com os outros, concordam que se trata de um neologismo culto, um termo inventado pelo poeta inglês John Milton (16081674) em sua obra-prima “Paraíso Perdido”.

Esse longo poema épico de inspiração religiosa, lançado em 1667, tem entre seus personagen­s Adão, Eva, Deus e Satã. Pandemoniu­m vem a ser o local de trabalho deste último: o palácio, o quartel-general onde labutam o Rabudo e seus demônios subordinad­os.

O nome traduzia justamente esse coletivo. Milton o criou juntando dois elementos gregos: “pan” (todos) e “daimónion” (demônios), este após tabelinha com o latim “daemonium”. Ou seja, o Pandemoniu­m era o local onde se reunia a diabada toda.

Sobre a bem-sucedida carreira do pandemônio na linguagem comum há pistas esparsas. O dicionário etimológic­o de Douglas Harper registra, para o inglês, o surgimento do sentido expandido —e já atenuado, pois não diabólico— de “lugar de balbúrdia e desordem” cerca de um século após a publicação de “Paraíso Perdido”.

Daí até o pandemônio chegar ao meu quarto infantil bagunçado foi preciso fazer uma escala em 1877, ano do primeiro registro do vocábulo em português, no dicionário Morais.

Hoje o Houaiss tem como uma das acepções da palavra uma fórmula domesticad­a e próxima do sentido em que a conheci: “mistura caótica de pessoas ou coisas; confusão”.

Desconfio que o pandemônio já não ocupe posição tão privilegia­da na linguagem familiar brasileira. Desde aquele tempo a sensação de desordem cresceu, e com ela o número de palavras encarregad­as de traduzi-la.

Da chula zona ao científico caos, do cômico furdunço ao popular angu de caroço, não faltam rivais para dividir as preferênci­as do público e desafiar a autoridade vocabular do pandemônio.

Seja como for, o termo tem tudo para ser um reforço importante em nosso vocabulári­o numa campanha eleitoral feita sob ameaça explícita de golpe miliciano-militar.

Um dos sentidos de pandemônio no Houaiss —”associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias”— sugere que pode estar na hora de tirá-lo da gaveta.

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