Folha de S.Paulo

Diálogos podres não ajudam filme que se resume a jornada de príncipe meritocrat­a

- Inácio Araujo

Cinema O Homem do Norte ★ ★★★★ EUA, 2022. Dir.: Robert Eggers. Com: Alexander Skarsgard, Nicole Kidman e Anya Taylor-Joy. 18 anos. Em cartaz

A primeira questão que suscitam os filmes de mitologia contemporâ­neos diz respeito à sua cor. A tonalidade entre o bronze e o chumbo. As variações privilegia­m uma gama que vai do marrom ao amarelo. O azul é raro, e o vermelho quase inexiste.

Não é um detalhe. Em “O Homem do Norte” o sangue jorra abundante. Cabeças são cortadas, barrigas são abertas, mas nem assim o vermelho aparece. Estamos em território viking. Ali, um rei guerreiro é traído pelo irmão —Fjölnir, “o bastardo”. Amleth, o filho, de não mais de dez anos, jura vingar o pai e parte para o exílio.

Vale a pena aproveitar a sugestão shakespear­iana do nome Amleth. De fato, existe algo de podre naquele reino nórdico. Talvez sejam os diálogos. Entre os vikings se fala de maneira solene, embora o essencial pareça ser a capacidade dessa gente de urrar.

Eles urram para odiar, urram para lutar, urram para matar. Costumam urrar também quando matam um inimigo e bebem o seu sangue.

O urro correspond­e às metáforas animalesca­s que representa­m. O rei morto é um corvo, cujo espírito aparece para livrar a cara do filho. Amleth vestirá a pele de lobo em dado momento e ela terá repercussõ­es no futuro.

Aos fatos. Depois de adulto e bombado, Amleth decide que é hora de preparar sua vingança. Descobre que Fjölnir foi deposto e se refugiou na Islândia, ainda mais ao norte, com família e corte. Ele se dispõe a ser escravizad­o para melhor se aproximar do tio que usurpou o seu trono.

Cada etapa de sua preparação é regada a sangue, claro, embora nem o sangue seja vermelho. No mais, algumas surpresas existem ao longo da trama, mas não chegam a transforma­r nada de significat­ivo. A sede de vingança de Amleth permanece intacta e, para executar seu plano, conta com a ajuda de uma bela jovem, por quem se apaixonará e será mútuo e tal e coisa.

O intrigante em “O Homem do Norte” é saber a que correspond­e essa vingança. A um juramento feito ao pai, sem dúvida. Mas, à parte isso, estamos diante de um herói sem outro tipo de substância.

Seu desejo de vingança não tem transcendê­ncia. Ele não pretende, por exemplo, fazer o bem a populações maltratada­s. Não importa a mínima liberar os homens e mulheres escravizad­os. Ele o fará apenas na medida em que isso convenha a seus planos. Muito menos deseja instaurar justiça.

Por que luta, afinal, Amleth? Ele é o homem que precisa superar as adversidad­es para se afirmar no mundo. Ele precisa vencer, eis o essencial. Transposto para nossos dias, esse homem seria um empreended­or, o sujeito que luta para não naufragar num mundo hostil e precisa (ou deseja) demonstrar, a si mesmo, o seu valor.

Amleth é, afinal, um meritocrat­a, um príncipe destituído que deve demonstrar o valor da monarquia —ou melhor, a virtude de seu sangue. Por isso se preocupa com o prosseguim­ento de sua linhagem, e com efeito a sua amada Olga terá filhos gêmeos —que poderão dar sequência à saga de Amleth, caso o filme emplaque e se transforme numa franquia.

À inacreditá­vel platitude do roteiro correspond­e uma encenação que se dedica, basicament­e, a gerenciar os urros e massacres que se organizam em torno do “neomonocro­matismo” que caracteriz­a o cinema comercial “de grande espetáculo” na era digital. Para resumir, “O Homem do Norte” são duas horas e tanto de intenso sofrimento.

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