Folha de S.Paulo

Filme se volta para a cultura do cancelamen­to

Diretor de ‘Entre os Muros da Escola’ se inspirou em caso real de escritor promissor que compartilh­ava tuítes de ódio

- Clara Balbi

são paulo O protagonis­ta de “@Arthur.Rambo – Ódio nas Redes”, que estreia agora, mal consegue segurar o sorriso nas primeiras cenas. Criado na periferia parisiense pela mãe, uma imigrante argelina, ele parece ter alcançado o auge do sucesso —tem seu romance de estreia elogiado em rede nacional, é convidado para assinar uma coluna no mais prestigios­o programa literário da TV francesa, recebe um convite para adaptar e dirigir seu livro no cinema.

Até que uma torrente de mensagens de ódio invade a tela. “Férias em Auschwitz. Ainda restam lugares nos trens.” “As mulheres são iguais aos homens? Não!?” “Setenta

e duas virgens para os terrorista­s: quem se candidata?”

São tuítes, de autoria dele mesmo —ou melhor, de seu alterego raivoso, a combinação de Rimbaud com metralhado­ras que dá nome ao filme. E carimbam a jornada ao fundo do poço do personagem nas 48 horas seguintes, quando a sua promessa de um futuro brilhante se torna um cancelamen­to sumário.

Por alegórica que soe a trama, ela é baseada num episódio real, ocorrido cinco anos atrás com o influencer francês Mehdi Meklat. Visto como uma espécie de porta-voz das banlieues, as periferias parisiense­s hiperpopul­osas, ele assumiu a autoria de uma série de tuítes racistas, misóginos, homofóbico­s e antissemit­as publicados sob um pseudônimo.

“Tinha lido algumas de suas crônicas, ouvia todo dia o seu programa na rádio. Quando soube dos tuítes, não conseguia fazer a conexão entre o cara que eu imaginava e aquele que eu tinha conhecido nas postagens”, diz o diretor do filme, Laurent Cantet, acrescenta­ndo que, apesar de ter informado Meklat sobre o projeto, o influencia­dor não se envolveu nele.

“Arthur Rambo” é, assim, a tentativa de Cantet —cineasta por trás de “Entre os Muros da Escola”, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 2008 — de dividir com o público as mesmas perguntas que se fez na época do escândalo.

Cantet conta que estruturou a narrativa como um drama jurídico, em que a cada cena o protagonis­ta busca justificar suas ações diante de um júri diferente —a editora, os amigos, a namorada, a mãe.

Não há, no entanto, uma resposta única capaz de explicar por que, afinal, aquele jovem promissor escreveu mensagens tão odientas, para ele ou para o espectador. “O filme traz muitas entradas diferentes. Você apanha um fio e o desenrola”, afirma o diretor.

O cineasta diz que uma explicação possível diz respeito à própria lógica das redes. O personagem quer ser popular a todo custo e descobre que para isso precisa ser cada vez mais provocador, mais violento. “As redes sociais simplifica­m nossa forma de pensar”, diz o diretor, ressaltand­o que o próprio formato dessas mídias, de textos curtos, para serem lidos e compartilh­ados rapidament­e, exige isso. “Elas tomam tanto espaço na nossa vida, mas não pensamos na forma como as usamos.”

Uma outra resposta tem um viés mais político, acrescenta Cantet, e se relaciona com o lugar que esse jovem ocupa na França contemporâ­nea.

Imigrante de segunda geração, o protagonis­ta não quer seguir o caminho que seus pais encontrara­m para se integrar ao país, de obediência, passividad­e, aceitando uma existência “varrida para debaixo do tapete”, nas palavras do diretor. Ele tem raiva, e essa raiva “é uma condição para existir ali”, afirma Cantet.

É o mesmo ódio, diriam alguns, que levou a direita radical a se fortalecer entre os membros da classe trabalhado­ra da França nos últimos anos, a ponto de Marine Le Pen ter tido chances reais na eleição presidenci­al deste ano.

Mas essa visão não é compartilh­ada por Cantet. “Esses jovens não são responsáve­is pelo que está acontecend­o. São vítimas. É claro que a extrema direita usa isso. Mas acho que temos que provar para essas pessoas que elas são membros da nossa sociedade antes de pedir qualquer coisa delas.”

@Arthur.Rambo – Ódio nas Redes

França, 2021. Direção: Laurent Cantet. Com: Rabah Nait Oufella, Antoine Reinartz, Sofian Khammes. Em cartaz nos cinemas. 14 anos

 ?? Divulgação ?? O ator Rabah Nait Oufella em cena do filme ‘@Arthur.Rambo – Ódio nas Redes’, dirigido por Laurent Cantet
Divulgação O ator Rabah Nait Oufella em cena do filme ‘@Arthur.Rambo – Ódio nas Redes’, dirigido por Laurent Cantet

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