Folha de S.Paulo

Uma douta podridão

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”. Escreve aos domingos

O dedo que aperta a tecla da urna na Bienal de Arte em Veneza representa para o artista brasileiro da instalação “Com o Coração Saindo pela Boca” apenas um dos inquietant­es desarranjo­s no presente corpo coletivo do Brasil.

Há outras partes corporais, mas a escultura chama a atenção no país onde Michelange­lo, pintando a “Criação de Adão” no teto da Capela Sistina, mostra o quase toque do firme dedo de Deus no hesitante dedo do homem em vias de ser criado. Já o indicador humano concebido pelo brasileiro está podre.

Quaisquer que sejam as motivações pessoais, o artista dispõe objetivame­nte o corpo como algo capaz de refletir e pensar o meio ambiente atual em pontos problemáti­cos. Em maior ou menor escala, as diversas peças da instalação ajustam-se a uma culta tradição de pensamento, para a qual tudo o que existe é corpo, e este é tudo aquilo que age ou atua.

Imaginar o país como um corpo coletivo é supor que ele assimila, de modo análogo a um dispositiv­o sensível, os estímulos sociais, culturais e políticos ativos num momento preciso da história. O que aí se figura como um centro de interpreta­ção pode ser o próprio instinto popular, absorvido e materializ­ado pelo artista.

Ao reproduzir o gesto da votação, a escultura põe em cena o momento crucial da forma política parlamenta­r. Não é necessaria­mente um ato de transforma­ção, mas algo que sinaliza a manutenção do formalismo democrátic­o compatível com o parlamenta­rismo, ainda que os resultados possam não se traduzir em avanço civil.

É possível votar no pior, como atestam as eleições de autocratas, empenhados no retrocesso da história. Por outro lado, até na opção progressis­ta o voto é o mecanismo a partir do qual um partido vitorioso é obrigado a abandonar quaisquer projetos de mudança profunda para integrar-se ao ordenament­o conservado­r do Estado.

Indiretame­nte, o trabalho do artista sugere a formulação de outro quadro de pensamento para a política. Há um bom tempo atrás, o filósofo e ativista francês Alain Badiou observou que determinad­os acontecime­ntos reais tornam-se obscuros quando se tenta compreendê-los a partir de referencia­is antigos como o Estado, o partido, a história e as classes. Acontecime­ntos pouco claros, porque se passam fora dos quadros da representa­ção clássica, exigem uma atenção ainda estranha à prática política.

Embora democratic­amente imprescind­ível, o voto não mostra tudo, isto é, não faz entender o que realmente pensam e querem as pessoas. Esse, porém, seria um caminho inovador: auscultar e sintonizar-se com o melhor das massas para instituí-las como povo. Sem isso, o dedo cumpre o rito eleitoral, porém, cedo ou tarde, revela-se podre no gesto.

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