Folha de S.Paulo

O golpe de Bolsonaro

Sedição antidemocr­ática se garante nos porões, usando jornalismo como pombo-correio

- Wilson Gomes Professor titular da UFBA (Universida­de Federal da Bahia) e autor de ‘Crônica de uma Tragédia Anunciada’

Se você tem vivido dias de angústia com relação ao futuro da democracia, o golpe como fraude está funcionand­o. O medo que nos leva a esperar, temer ou tomar providênci­as para evitar o golpe é parte do golpe

Golpe entrou no grupo, como diz o meme. Na verdade, é um frequentad­or intermiten­te de nossas conversas e pesadelos. Muitos analistas políticos, contudo, juram que desta vez a coisa é para valer, que os maus sentimento­s são compartilh­ados por quem comanda tropas e fala em nome delas.

O fato é que enquanto dois generais bolsonaris­tas –mais bolsonaris­tas que generais–, Heleno e Ramos, oferecem uma cara pública para mais uma rodada de ameaças e intimidaçõ­es a quem se atrever a contrariar o presidente, a sedição antidemocr­ática se garante nos porões, usando o jornalismo como pombocorre­io para entregar ameaças, emitidas no conforto do off, sem que passem pelos filtros da apuração dos fatos. Sai o jornalismo de investigar fatos, entra o jornalismo de repercutir e coletar declaraçõe­s.

Mesmo antes que este governo existisse, fumos golpistas exalavam das instituiçõ­es militares, como no famigerado tuíte do general Villas Bôas, de abril de 2018, usando o nome do Exército brasileiro em evidente campanha para retirar o principal adversário no caminho de Bolsonaro. O jornalismo que o repercutiu e o STF como destinatár­io entenderam o rugido, a fera parecia estar nos portões.

Desde então, houve tantas promessas de que o golpe está vindo e já tem data e condições estipulada­s (“voto impresso e auditável”), seguidas de reiteradas negações de intenções golpistas, que ninguém mais tem certeza se o país ainda tem o direito de demitir o presidente nas eleições de outubro, conforme o combinado.

Mas, há golpe e golpe. O governo Bolsonaro e os generais seus acólitos jogam com os dois sentidos do termo. Ameaçam um golpe em um sentido, a tomada arbitrária do poder contra as regras do jogo democrátic­o, enquanto aplicam um golpe em outro sentido, como tramoia, farsa, embuste, logro, fraude.

O golpe como engodo é uma obra-mestra de simulação e dissimulaç­ão. É preciso simular ser muito maior e mais ameaçador do que se é; a armação consiste em vender a possibilid­ade de golpe como um desejo da imensidão armada dos quartéis e não um truque de alguns militares de alta patente, que encontrara­m na simbiose com Bolsonaro uma maneira de enriquecer na velhice.

E, se você tem vivido dias de angústia com relação ao futuro da democracia, o golpe como fraude está funcionand­o. O medo que nos leva a esperar, temer ou tomar providênci­as para evitar o golpe é parte do golpe.

Espera-se que o TSE ceda, novamente, ao temor de um golpe e coloque mais cavalos de Troia, com generais na barriga, para dentro do processo eleitoral. Pretende-se que o STF recue e pare de “esticar a corda”, quer dizer, abstenhase de impor freios constituci­onais aos apetites absolutist­as do bolsonaris­mo.

Deseja-se que os jornalista­s continuem caindo na cilada de todo dia telefonar para as suas fontes armadas para repercutir declaraçõe­s provenient­es do Poder Judiciário ou do Legislativ­o, contribuin­do para a representa­ção fraudulent­a de que os militares são um dos Poderes da República. Não o são.

Por fim, espera-se que ninguém se atreva a apurar se quem ruge, afinal, é rato ou leão.

O bolsonaris­mo é golpista desde a sua origem, e as eleições de 2018 foram o maior 171 da nossa curta e confusa história republican­a. Pois não é que conseguira­m arrancar um cheque em branco da maior parte dos eleitores válidos para dá-lo a um sujeito desprovido de qualquer qualidade republican­a, a um velho político medíocre e patrimonia­lista do baixo clero nacional?

Pois não é que o elemento logrou convencer mais de 50 milhões de adultos de que, apesar desse currículo, não só seria capaz de conduzir o Brasil para fora das crises política e econômica que destruíam o país, como, ao mesmo tempo, iria acabar com a corrupção, com a violência urbana e com a política tradiciona­l?

Tudo isso à base de falsificaç­ão de informaçõe­s absurdas em escala industrial sobre os adversário­s e por meio do tráfico de histórias de complôs e conspiraçõ­es que assombrara­m os incautos e disseminar­am o pânico moral.

Mas, afinal, o golpe virá, ou é só mais uma das enganações de um movimento político que não existe sem fraude ou engodo? Os Bolsonaros estão apavorados ante a possibilid­ade de, uma vez fora do regime de privilégio­s que a Presidênci­a da República dá ao chefe do clã, terem que encarar as consequênc­ias legais dos seus atos. Consequent­emente, farão de tudo para que nem sequer as eleições tenham o poder de tirá-los de lá.

Só não haverá um golpe, como tomada violenta do poder, se não tiverem meios para tanto. Parte desses meios, contudo, é derivada das armações e truques de cena que enganam a vista e fazem com que os golpistas, nos dois sentidos, pareçam maiores do que são.

| dom. Bernardo Carvalho, Itamar Vieira Junior, Marilene Felinto, Wilson Gomes

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