Folha de S.Paulo

Consideraç­ões sobre a guerra na Ucrânia

Revivemos selvageria­s cometidas em passado recente contra civis desarmados

- Ricardo Lewandowsk­i Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo

O oficial prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831), autor de um dos primeiros tratados sobre a arte bélica, ainda hoje estudado em várias academias militares, definiu a guerra como “um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeterse à nossa vontade”, afirmando ser ela simplesmen­te “a continuaçã­o da política por outros meios”. Ou seja, esgotados os expediente­s suasórios convencion­ais, os Estados não raro recorrem às armas para atingir seus objetivos —desde que disponham de recursos para tanto.

Essa concepção remonta, quando menos, às ponderaçõe­s do florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), para quem um governante precisa estar “disposto a voltar-se para a direção que os ventos e as variações da sorte o impelirem”, sabendo “entrar para o mal, se a isso estiver obrigado”. Cerca de três séculos depois, o escritor germânico August Ludwig von Rochau (1810-1873), trilhando a mesma senda, desenvolve­u o conceito de realpoliti­k, sustentand­o que a política e a diplomacia devem basear-se exclusivam­ente em cálculos de ordem prática, atentas aos fatores reais do poder, dispensand­o quaisquer consideraç­ões de natureza moral ou ideológica.

Contemporâ­neo de Clausewitz e Rochau, Otto von Bismarck (18151898), presidente do conselho de ministros da Prússia, levou essa concepção às últimas consequênc­ias ao promover, com implacável truculênci­a e às custas de inúmeras guerras, a unificação da Alemanha, tornando-se depois o primeiro chanceler do império dela resultante. Em conhecida manifestaç­ão dirigida a parlamenta­res alemães, revelou o seu modo de agir com despudorad­a crueza, afirmando que “as grandes questões de nosso tempo não serão resolvidas com discursos ou deliberaçõ­es da maioria, mas com ferro e sangue”.

De fato, a crônica da Europa, de Bismarck em diante, foi forjada com esses dois aterradore­s ingredient­es. Depois do cruento embate francoprus­siano (1870-1871), seguiram-se a Primeira (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cujas trágicas consequênc­ias são sobejament­e conhecidas.

As terríveis atrocidade­s cometidas nesse último conflito levaram à criação da Organizaçã­o das Nações Unidas, em um momento de rara unanimidad­e entre os poderosos. Consta da respectiva carta de fundação que seus signatário­s estavam “resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que, por duas vezes, no espaço de nossas vidas, trouxe sofrimento­s indizíveis à humanidade”, compromete­ndo-se a “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos”, além de garantir, “pela aceitação de princípios e a instituiçã­o de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum”.

Depois de viver um período de relativa paz desde a assinatura daquele importante documento —sem embargo dos inúmeros conflitos regionais que continuam sendo travados no mundo—, a humanidade voltou a testemunha­r, com um misto de assombro e pesar, a invasão de um país soberano por uma grande potência, seguida da ocupação de porções de seu território, ao arrepio do direito internacio­nal, revivendo as selvageria­s cometidas num passado ainda recente, sobretudo contra civis desarmados.

Em que pesem as justificat­ivas oficiais e oficiosas para a audaciosa ofensiva, atribuindo-a a provocaçõe­s de potências adversária­s ou a agressões similares por elas cometidas, não se afigura possível aceitar, em pleno século 21, sob pena de grave retrocesso civilizató­rio, a reedição de uma realpolitk que se imaginava definitiva­mente sepultada pela história.

[ Em que pesem as justificat­ivas oficiais e oficiosas para a audaciosa ofensiva, atribuindo-a a provocaçõe­s de potências adversária­s ou a agressões similares por elas cometidas, não se afigura possível aceitar (...) a reedição de uma realpolitk que se imaginava definitiva­mente sepultada pela história

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