Folha de S.Paulo

Cadeia da reciclagem ganha modernizaç­ão via startups

Agenda ESG e logística reversa incentivam tecnologia, sem abrir mão do catador

- Daniela Arcanjo Esta reportagem foi feita com a bolsa de produção jornalísti­ca sobre reciclagem inclusiva da Fundação Gabo e Latitud R

são paulo Indispensá­vel na gestão do lixo e cada vez mais valorizada à medida que a crise climática bate à porta, a cadeia da reciclagem passou as últimas décadas praticamen­te incólume à revolução digital. Esse cenário começou a mudar recentemen­te, na medida em que startups identifica­ram oportunida­des de negócio na área.

A introdução da tecnologia, porém, não exclui a enorme quantidade de trabalhado­res envolvidos na atividade, indispensá­veis para a qualidade da reciclagem, segundo especialis­tas.

Um desses exemplos está em Carapicuíb­a, na Grande São Paulo. Ali, da calçada da marginal Córrego Cadaval, o pedestre mal consegue acompanhar os apressados carros que atravessam a via. Há um veículo, porém, que de hora em hora desponta no horizonte em passos lentos.

São carroças com muito mais peso do que deveriam carregar: papelão, garrafas e latinhas lotam a traseira dos carrinhos de catadores de reciclávei­s. Eles vêm para descarrega­r parte do volume que coletaram nas ruas. O destino não é um ferro-velho, mas uma startup —a Green Mining.

Desde o fim de 2021, funciona ali uma estação que paga pelo menos seis vezes mais ao catador por garrafas de vidro —resíduo de matéria-prima abundante e, por isso, de menor valor na cadeia de reciclagem.

A estação Preço de Fábrica, como foi batizada, é um dos projetos da Green Mining. Em outro, os próprios funcionári­os da startup buscam os materiais em bares e restaurant­es da região.

Matheus Magalhães, 27, está na função desde 2018, mas sua principal tarefa é registrar as informaçõe­s dos resíduos que chegam no ponto por meio de catadores autônomos.

Os dados são inseridos em um aplicativo e registrado­s em blockchain, sistema que se popularizo­u com a difusão das criptomoed­as. A ferramenta é uma espécie de livro público da internet, praticamen­te impossível de ser violado.

“Nenhum dado pode ser alterado. A gente garante que ninguém vai aumentar ou reduzir o que já foi coletado” afirma um dos fundadores da empresa, Rodrigo Oliveira.

Com o financiame­nto de grandes produtores de embalagens, o vidro que chega ali vai para empresas de embalagens e volta para as prateleira­s, processo que aumenta a vida útil dos aterros, gasta menos energia e poupa recursos naturais.

A aprovação da lei para a Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010, e a assinatura do Acordo Setorial de Embalagens, em 2015, abriram um flanco para as empresas de tecnologia, que passaram a atuar como um braço logístico da reciclagem para grandes companhias.

A lei dispõe sobre a logística reversa, ou seja, o caminho de volta das embalagens após o consumo. Já o acordo, feito entre grandes empresas e poder público, determinav­a a redução de no mínimo 22% das embalagens levadas a aterros até 2018.

Nesse contexto, a apresentaç­ão de notas fiscais tornou-se expediente comum para comprovara reciclagem. Empresas intermediá­rias compram esses créditos de um dos elos da cadeia (uma cooperativ­a, por exemplo) e os vendem a companhias que precisam prestar contas sobre suas embalagens.

É um sistema parecido com o mercado de créditos de carbono, diz Flávia Cunha, fundadora da Casa Causa, hub de soluções para economia circular. A empreended­ora, porém, faz ressalvas à aplicação desse método no Brasil.

“É quase que uma moeda de troca. Não tem uma auditoria, você não consegue ver esse fluxo acontecer. Só vê a troca de papel, não vê a troca do reciclável. Falta rastreabil­idade.”

O empresário Dione Manetti nomeou a simples comerciali­zação de créditos de “monetizaçã­o de papel”.

“Eu me aproprio de um resultado que já existe na cadeia, maseu não invisto naba sede lapara ampliara sua capacidade de recuperaçã­o ”, afirma.

A Pragma, sua empresa, lança mão desse recurso, vendendo notas fiscais adquiridas com as cooperativ­as para as companhias que precisarem comprovar alogística reversa. Os papéis passam por um sistema que verifica a sua validade na Receita Federal e confere a assinatura eletrônica.

Mas areal diferença, diz ele, está no acompanham­ento da verba: a cooperativ­a parceira estabelece um preço pelas notas, masaPr agma participa do plano de ações. “Se eu simplesmen­te pagar à cooperativ­a e não acompanhar e planejar junto, correrei o risco de que esse dinheiro seja apropriado por poucas pessoas.”

O MNCR (Movimento Nacional de Catadores de Materiais Reciclávei­s) estima que existam 800 mil catadores no Brasil. O Anuário da Reciclagem de 2021 mapeou 9.754 desses profission­ais em 358 organizaçõ­es de materiais reciclávei­s. A estimativa é que 54% sejam mulheres, e 76,1%, negros.

No bairro de Periperi, apouco mais de uma hora de transporte público do Pelourinho, cartão-postal do centro de Salvador, Genivaldo Ribeiro sustenta a sua família há dez anos coma renda que consegue coma reciclagem.

Ele é um dos fundadores da Cooperguar­y, que nasceu da tentativa de limpar o rio que passa na comunidade.

“O ambiente influencia em tu dona nossa vida. Agente está vendo como a chuva está destruindo as plantações, oque vai impactara alimentaçã­o e encarecer tudo ”, afirma Tico, comoéconhe­c ido.

Na sede da cooperativ­a onde Tico é diretor, os materiais prensados se empilham na direção das frestas do telhado, que com o enorme portão da fachada dão luz suficiente para os 20 cooperados minerarem os objetos que chegam dos caminhões.

Cada um na sua baia, eles trabalham no mesmo compasso: no meio do galpão, uma das reciclador­as separa o plástico azul da capa dos fichários de papelão que devem ter sido úteis em um arquivo, enquanto outro desmonta eletrônico­s antigos para procurar o material mais valorizado da reciclagem: o cobre.

Há dois colaborado­res, porém, que mudaram a rotina nos últimos dois meses. De terça a sábado, Ane Silva e Gilberto Santos trocam o trajeto para a vizinha Cooperguar­y por um galpão no Rio Vermelho, bairro boêmio de Salvador.

Ali pegam triciclos e saem pelo bairro fazendo a coleta de reciclávei­s em casas e restaurant­es que se inscrevera­m no programa Roda, da startup baiana Solos.

Com financiame­nto de grandes empresas, a startup firma parcerias temporária­s com cooperativ­as. Uma das condiciona­ntes do contrato é disponibil­izar dois cooperados para fazer a rota.

“Aqui em Salvador nós víamos muito menos gente catando material. O que estamos vendo agora não é o catador nato, que cata todos os dias, mas o espontâneo. Ele está desemprega­do, passando dificuldad­es, e está catando para levar o sustento para casa. Isso impacta direto no trabalho da cooperativ­a.”

A estratégia de financiame­nto vai ao encontro do que Tico reivindica em qualquer oportunida­de: a remuneraçã­o do trabalho das cooperativ­as. Ele já se cansou de mobilizar caminhão e colaborado­res para chegar a um destino e conseguir apenas uma caixa de vidro. Com o pagamento, a remuneraçã­o do trabalho está garantida. “Aí todo material é lucro”, diz ele.

“Tecnologia é um calcanhar de Aquiles para a gente hoje. Entendemos que é fundamenta­l, não só para garantir uma operação mais eficiente mas também para ter um rastreamen­to de dados que seja mais confiável”, afirma Saville Alves, fundadora da empresa.

Mas o investimen­to precisa ser alto.

“Geolocaliz­ação, como faz Uber e iFood, é supercaro. Hoje a gente não consegue colocar”, afirma Alves. “Parece algo simples, porque está no nosso dia a dia, mas só as grandes conseguem fazer em tempo real.”

 ?? Rafaela Araújo/Folhapress ?? Ane Silva, catadora do projeto Roda, delivery de reciclagem da startup baiana Solos, em Salvador
Rafaela Araújo/Folhapress Ane Silva, catadora do projeto Roda, delivery de reciclagem da startup baiana Solos, em Salvador
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil