Cadeia da reciclagem ganha modernização via startups
Agenda ESG e logística reversa incentivam tecnologia, sem abrir mão do catador
são paulo Indispensável na gestão do lixo e cada vez mais valorizada à medida que a crise climática bate à porta, a cadeia da reciclagem passou as últimas décadas praticamente incólume à revolução digital. Esse cenário começou a mudar recentemente, na medida em que startups identificaram oportunidades de negócio na área.
A introdução da tecnologia, porém, não exclui a enorme quantidade de trabalhadores envolvidos na atividade, indispensáveis para a qualidade da reciclagem, segundo especialistas.
Um desses exemplos está em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Ali, da calçada da marginal Córrego Cadaval, o pedestre mal consegue acompanhar os apressados carros que atravessam a via. Há um veículo, porém, que de hora em hora desponta no horizonte em passos lentos.
São carroças com muito mais peso do que deveriam carregar: papelão, garrafas e latinhas lotam a traseira dos carrinhos de catadores de recicláveis. Eles vêm para descarregar parte do volume que coletaram nas ruas. O destino não é um ferro-velho, mas uma startup —a Green Mining.
Desde o fim de 2021, funciona ali uma estação que paga pelo menos seis vezes mais ao catador por garrafas de vidro —resíduo de matéria-prima abundante e, por isso, de menor valor na cadeia de reciclagem.
A estação Preço de Fábrica, como foi batizada, é um dos projetos da Green Mining. Em outro, os próprios funcionários da startup buscam os materiais em bares e restaurantes da região.
Matheus Magalhães, 27, está na função desde 2018, mas sua principal tarefa é registrar as informações dos resíduos que chegam no ponto por meio de catadores autônomos.
Os dados são inseridos em um aplicativo e registrados em blockchain, sistema que se popularizou com a difusão das criptomoedas. A ferramenta é uma espécie de livro público da internet, praticamente impossível de ser violado.
“Nenhum dado pode ser alterado. A gente garante que ninguém vai aumentar ou reduzir o que já foi coletado” afirma um dos fundadores da empresa, Rodrigo Oliveira.
Com o financiamento de grandes produtores de embalagens, o vidro que chega ali vai para empresas de embalagens e volta para as prateleiras, processo que aumenta a vida útil dos aterros, gasta menos energia e poupa recursos naturais.
A aprovação da lei para a Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010, e a assinatura do Acordo Setorial de Embalagens, em 2015, abriram um flanco para as empresas de tecnologia, que passaram a atuar como um braço logístico da reciclagem para grandes companhias.
A lei dispõe sobre a logística reversa, ou seja, o caminho de volta das embalagens após o consumo. Já o acordo, feito entre grandes empresas e poder público, determinava a redução de no mínimo 22% das embalagens levadas a aterros até 2018.
Nesse contexto, a apresentação de notas fiscais tornou-se expediente comum para comprovara reciclagem. Empresas intermediárias compram esses créditos de um dos elos da cadeia (uma cooperativa, por exemplo) e os vendem a companhias que precisam prestar contas sobre suas embalagens.
É um sistema parecido com o mercado de créditos de carbono, diz Flávia Cunha, fundadora da Casa Causa, hub de soluções para economia circular. A empreendedora, porém, faz ressalvas à aplicação desse método no Brasil.
“É quase que uma moeda de troca. Não tem uma auditoria, você não consegue ver esse fluxo acontecer. Só vê a troca de papel, não vê a troca do reciclável. Falta rastreabilidade.”
O empresário Dione Manetti nomeou a simples comercialização de créditos de “monetização de papel”.
“Eu me aproprio de um resultado que já existe na cadeia, maseu não invisto naba sede lapara ampliara sua capacidade de recuperação ”, afirma.
A Pragma, sua empresa, lança mão desse recurso, vendendo notas fiscais adquiridas com as cooperativas para as companhias que precisarem comprovar alogística reversa. Os papéis passam por um sistema que verifica a sua validade na Receita Federal e confere a assinatura eletrônica.
Mas areal diferença, diz ele, está no acompanhamento da verba: a cooperativa parceira estabelece um preço pelas notas, masaPr agma participa do plano de ações. “Se eu simplesmente pagar à cooperativa e não acompanhar e planejar junto, correrei o risco de que esse dinheiro seja apropriado por poucas pessoas.”
O MNCR (Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis) estima que existam 800 mil catadores no Brasil. O Anuário da Reciclagem de 2021 mapeou 9.754 desses profissionais em 358 organizações de materiais recicláveis. A estimativa é que 54% sejam mulheres, e 76,1%, negros.
No bairro de Periperi, apouco mais de uma hora de transporte público do Pelourinho, cartão-postal do centro de Salvador, Genivaldo Ribeiro sustenta a sua família há dez anos coma renda que consegue coma reciclagem.
Ele é um dos fundadores da Cooperguary, que nasceu da tentativa de limpar o rio que passa na comunidade.
“O ambiente influencia em tu dona nossa vida. Agente está vendo como a chuva está destruindo as plantações, oque vai impactara alimentação e encarecer tudo ”, afirma Tico, comoéconhec ido.
Na sede da cooperativa onde Tico é diretor, os materiais prensados se empilham na direção das frestas do telhado, que com o enorme portão da fachada dão luz suficiente para os 20 cooperados minerarem os objetos que chegam dos caminhões.
Cada um na sua baia, eles trabalham no mesmo compasso: no meio do galpão, uma das recicladoras separa o plástico azul da capa dos fichários de papelão que devem ter sido úteis em um arquivo, enquanto outro desmonta eletrônicos antigos para procurar o material mais valorizado da reciclagem: o cobre.
Há dois colaboradores, porém, que mudaram a rotina nos últimos dois meses. De terça a sábado, Ane Silva e Gilberto Santos trocam o trajeto para a vizinha Cooperguary por um galpão no Rio Vermelho, bairro boêmio de Salvador.
Ali pegam triciclos e saem pelo bairro fazendo a coleta de recicláveis em casas e restaurantes que se inscreveram no programa Roda, da startup baiana Solos.
Com financiamento de grandes empresas, a startup firma parcerias temporárias com cooperativas. Uma das condicionantes do contrato é disponibilizar dois cooperados para fazer a rota.
“Aqui em Salvador nós víamos muito menos gente catando material. O que estamos vendo agora não é o catador nato, que cata todos os dias, mas o espontâneo. Ele está desempregado, passando dificuldades, e está catando para levar o sustento para casa. Isso impacta direto no trabalho da cooperativa.”
A estratégia de financiamento vai ao encontro do que Tico reivindica em qualquer oportunidade: a remuneração do trabalho das cooperativas. Ele já se cansou de mobilizar caminhão e colaboradores para chegar a um destino e conseguir apenas uma caixa de vidro. Com o pagamento, a remuneração do trabalho está garantida. “Aí todo material é lucro”, diz ele.
“Tecnologia é um calcanhar de Aquiles para a gente hoje. Entendemos que é fundamental, não só para garantir uma operação mais eficiente mas também para ter um rastreamento de dados que seja mais confiável”, afirma Saville Alves, fundadora da empresa.
Mas o investimento precisa ser alto.
“Geolocalização, como faz Uber e iFood, é supercaro. Hoje a gente não consegue colocar”, afirma Alves. “Parece algo simples, porque está no nosso dia a dia, mas só as grandes conseguem fazer em tempo real.”