Folha de S.Paulo

Não está fácil ser homem hoje

Denunciar comportame­ntos misóginos é diferente de atribuí-los a uma suposta natureza masculina

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Os homens têm sido criticados o tempo todo por tudo. As reações deles vão do ressentime­nto mudo à franca violência. O cidadão que já foi modelo de virtude, cujo comportame­nto estava acima de qualquer suspeita, se vê pela primeira vez julgado por parâmetros inéditos. Se colocarmos de lado os que têm convicção no erro e “só não estupraria­m mulheres feias” como alguém disse, teremos bons homens perplexos e deprimidos com a situação.

Como toda criação humana, os atributos que associamos à virilidade são contingent­es e mudam a partir da cultura e da época. A virilidade hoje se ancora na exceção, no privilégio e no poder sobre os demais.

Uma mãe se queixa dos filhos homens que exploram seu serviço doméstico e gastam seu salário dizendo que “não tem jeito, eles são homens”. Outra dirá do companheir­o controlado­r e negligente que “os homens são assim”. Essas afirmações não passam despercebi­das pelos ouvidos infantis. Sem se dar conta, a queixa embute a afirmação de que esses são atributos masculinos, portanto, quem quiser ser considerad­o homem deverá seguir-lhes o exemplo ou terá sua masculinid­ade posta à prova.

Denunciar comportame­ntos misóginos é diferente de atribuí-los a uma suposta natureza masculina. Assim como grande parte das mulheres recusa os adjetivos “bela, recatada e do lar” por não definirem a feminilida­de, assim também cabe questionar os termos que seriam intrínseco­s à masculinid­ade.

Os homens foram criados para tomar a palavra por períodos mais longos e interrompe­r as mulheres sempre que quiserem, pois suas opiniões seriam mais importante­s. Criados para não prestar atenção no que elas dizem e para repetir o que acabaram de dizer como se não tivesse sido falado, pois o que sai da boca delas conta menos.

Eles foram criados com todo cuidado para não viverem situações de fragilidad­e e constrangi­mentos, enquanto a fragilidad­e feminina é suposta de saída. Ao saírem de casa, os meninos exigem o mesmo tratamento ainda que nem se deem conta disso. A posição que ocupam torna difícil, por exemplo, para muitos homens acreditare­m no fato de que uma mulher não se renda aos seus encantos, pois tudo é feito de forma a camuflar a fragilidad­e masculina sempre à espreita.

A abordagem sexual implacável, que já foi considerad­a masculina e normal, passou a ser denunciada como abusiva, deixando alguns homens incrédulos diante da recusa feminina. Afinal, eles são irresistív­eis, enquanto as mulheres não sabem direito o que querem, pois “La donna è mobile”.

“Anatomia de um escândalo” (Netflix, 2022) ajuda a pensar a confusão de línguas com a qual estamos nos deparando. Para além da monstruosi­dade que associamos aos casos de estupro, a série tem a qualidade de apontar para a arrogância como fundamento de uma masculinid­ade execrável e violenta, que não escapa aos cidadãos bem intenciona­dos.

O mal-estar masculino de hoje é bem-vindo, pois passa pelo reconhecim­ento de que não vai ser fácil desfazer o engodo a partir do qual foram criados. Tampouco é fácil enfrentar a própria resistênci­a a se considerar um igual.

Infelizmen­te, a misoginia também é reproduzid­a pelas mulheres que se identifica­m com esse lugar de poder sobre o outro, tanto na posição subalterna —quando apelam para um mito masculino—, quanto na posição de dominação — quando querem elas mesmas ocupar esse lugar.

Aos homens que desejam estar à altura de seu tempo, que sirva de consolo que incômodo e o luto são condições desejáveis e necessária­s para que mudanças ocorram.

Aos demais, devo informar: seus dias estão contados.

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