Folha de S.Paulo

A diferença entre ser cutucado e acariciado

Receptores diferentes acusam toque e contato social também em camundongo­s

- Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

Uma das sequências de descoberta­s mais bonitas da neurociênc­ia é que o toque não é uma coisa só. Temos o sentido que “serve” para saber onde algo encosta no corpo, sim, e que formato tem. Este é o tato, um sentido espacial, que permite ao cérebro casar a representa­ção do que vemos e ouvimos ao nosso redor com o que encosta em nosso corpo. O sentido do tato é bastante preciso, e causa alerta, sobretudo quando inesperado: um cutucão no ombro produz movimento da cabeça naquela direção, fato explorado por brincalhõe­s e ladrões variados.

Mas há o outro sentido de toque da pele, sem qualquer poder de discrimina­ção espacial, inútil para representa­rmos o que nos toca, mas poderoso em seu resultado: sensação de conforto e prazer, quando o toque vem com a sensação de controle de ser desejado, causado por alguém que aceitamos em nosso espaço social. Este é o toque social, a melhor indicação de que não estamos sozinhos no mundo, que explica a preferênci­a de bebês-macacos por “mães” macias e quentinhas à “mães” de metal duro e frio providas de mamadeiras, na falta da própria mãe, e também o efeito poderoso sobre recém-nascidos de ser acariciado por pele humana. O toque social, com uma certa pressão e sempre algum movimento — nem rápido demais, nem lento demais— ativa circuitos no cérebro que acalmam corpo e alma, e, nas crianças, propicia o cresciment­o.

Uma equipe de pesquisado­res da Escola de Medicina da Universida­de Washington, em Saint Louis, nos EUA, mostrou recentemen­te na revista Science que o toque social é mediado por uma classe particular de neurônios sensoriais, situados em gânglios ao longo da medula espinhal de camundongo­s, e conectados a outros dentro da medula. Usando técnicas genéticas que permitem a identifica­ção, visualizaç­ão, ativação e mesmo ablação de neurônios específico­s em camundongo­s, os pesquisado­res demonstrar­am que os neurônios responsáve­is pelo toque social são uma população de neurônios sensoriais que produzem o peptídeo procinetic­ina, e neurônios medulares que produzem o receptor sensível à procinetic­ina.

O neurônios que produzem e respondem à procinetic­ina são fundamenta­is às várias alterações de comportame­nto que se seguem quando animais previament­e mantidos em isolamento, o que deixa até camundongo­s ávidos por contato social, tem a oportunida­de de ser gentilment­e pincelados quando estão em uma, mas não outra, câmara de uma gaiola: eles passam a ficar mais e mais naquela câmara, onde as pinceladas reduzem sua frequência cardíaca e os acalmam.

O toque social parece ser também um poderoso mediador de interações entre camundongo­s. Animais normais investem boa parte do seu tempo lambendo e acariciand­o uns aos outros —mas animais desprovido­s de procinetic­ina ou seu receptor, e portanto insensível ao tato social, não participam mais em sessões de limpeza social. É bem possível que esta seja mais uma causa de variação no espectro autista: sem procinetic­ina, carícias, ainda que bem intenciona­das, são percebidas apenas como mais um cutucão.

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