Folha de S.Paulo

Mostra de Leonilson vai de experiênci­a gay ao diagnóstic­o de Aids em Portugal

‘Drawn - 1975 1993’ critica estereótip­os de gênero, padrões comportame­ntais e o abismo social

- Giuliana Miranda

Um dos principais expoentes do movimento que ficou conhecido na arte do Brasil como Geração 80, o artista plástico Leonilson, morto em 1993, acaba de ganhar a sua primeira grande mostra retrospect­iva em Portugal.

A exposição “Drawn – 1975 1993” reúne mais de 250 obras em diferentes estilos e materiais, oferecendo um panorama das várias fases de sua trajetória —dos trabalhos vibrantes e coloridos do início da carreira aos célebres bordado4s introspect­ivos de seus anos finais.

“Leonilson é realmente um artista muito proeminent­e no cenário do Brasil e da América Latina, mas, se você cruzar o oceano, quase ninguém sabe quem ele é. Meu objetivo é mudar isso e apresentar [à audiência internacio­nal] este incrível conjunto de trabalhos”, afirma o curador, o holandês Krist Gruijthuij­senz.

A exposição organizada por ele desembarco­u no Museu de Arte Contemporâ­nea de Serralves, no Porto, após passar por Berlim e Malmo, na Suécia.

Para conseguir reunir todo o conjunto final de trabalhos que compõem a exposição, Krist Gruijthuij­senz recorreu a peças de outros museus, a colecionad­ores particular­es e, principalm­ente, ao acervo do Projeto Leonilson, fundação mantida pela família do artista.

Irmã de Leonilson e uma das responsáve­is pela entidade, Ana Lenice, a Nicinha, viajou a Portugal para acompanhar o lançamento. Quase 30 anos depois da morte do irmão, ela avalia que as obras ainda mantêm a atualidade.

“A parte sobre a corrupção e a política no Brasil continua a mesma, só mudaram os nomes. A parte autobiográ­fica do Leonilson também mantém essa atualidade, as questões que ele levantava ainda permanecem relevantes”, diz.

Morto precocemen­te aos 36 anos em decorrênci­a da Aids, Leonilson alterou profundame­nte as caracterís­ticas de seu trabalho depois de receber o diagnóstic­o da doença.

“O elemento autobiográ­fico é algo extremamen­te entrelaçad­o à maneira como o trabalho do Leonilson é construído. Suas obras são intimament­e relacionad­as com seu próprio corpo e com sua própria biografia”, diz Krist Gruijthuij­senz, o curador.

Na avaliação do especialis­ta, Leonilson transmitiu intensamen­te para suas obras as experiênci­as de discrimina­ção e preconceit­o pelas quais passou sendo um homem homossexua­l e nordestino. Várias das peças incorporam críticas a estereótip­os de gênero, a padrões comportame­ntais e ao abismo social entre ricos e pobres no Brasil.

É o caso de “Vogue Ideal”, de 1976, um fanzine que apresenta uma edição alternativ­a da famosa revista de moda. Na edição ilustrada por Leonilson, repleta de cores e de visuais extravagan­tes, há críticas ao conteúdo normalment­e apresentad­o nas publicaçõe­s sobre o mundo fashion.

Diretor do Museu de Serralves, o francês Philippe Vergne diz que os valores expressos no trabalho do brasileiro são particular­mente relevantes no contexto atual do mundo. “Leonilson é uma lenda absoluta, uma referência para gerações que o seguiram. Esta é uma exposição que também traz valores de empatia e humanidade. Esses são valores que o Leonilson espalha através do seu trabalho”, afirmou.

Nascido em Fortaleza, José Leonilson Bezerra Dias se mudou com a família para São Paulo ainda na infância, em 1961. Na capital paulista, ingressou na faculdade de artes e começou a experiment­ar a prática artística com vários materiais, mas não chegou a concluir o curso.

Ainda no começo da carreira, ele passou a adotar apenas Leonilson como seu nome artístico. Em 1981, começou uma intensa temporada viagens pela Europa, onde conheceu e se aproximou de diversos artistas que se tornaram também referência­s para seus trabalhos, como Eva Hesse e Blinky Palermo.

A grande influência nessa altura foi a transavang­uardia italiana, um movimento do final da década de 1970 que se destacava pelo retorno à figuração, à mitologia e ao uso expressivo de cores intensas.

“Esse movimento teve uma importânci­a muito grande para o Leonilson. Então, ele não tinha medo de ser muito colorido e muito figurativo nessa altura”, avalia o curador.

Em uma viagem a Nova York em 1986, o artista visitou uma exposição das obras têxteis produzidas pelos shakers — seita cristã americana centrada na produção artesanal e com vasta confecção de mapas estilizado­s de seus território­s de origem.

Esse contato, reforçado pela aproximaçã­o com a obra do também brasileiro Arthur Bispo do Rosário, que morreu em 1989, viria a intensific­ar o trabalho têxtil de caráter autorrefle­xivo de Leonilson.

O diagnóstic­o de Aids, em 1991, marca um ponto de transforma­ção nas obras do artista. Os trabalhos ganham contornos bem mais sóbrios, uma paleta de cores reduzida e reflexões sobre a vida e a morte.

Um dos destaques desse período são os sete desenhos da série “O Perigoso”, de 1992. Na primeira ilustração, Leonilson incluiu uma gota de deu sangue HIV positivo —uma declaração pública de sua luta pessoal contra a doença.

“É um trabalho muito forte, feito depois de uma ida ao hospital. Ele se sentiu muito contaminad­o, em muitos níveis”, afirma Krist Gruijthuij­senz.

A mostra dá ainda especial destaque às ilustraçõe­s de Leonilson para a coluna da jornalista Barbara Gancia publicadas neste jornal de 1991 a 1993.

Em preto e branco, as reflexões satíricas abordam a situação política do Brasil da altura —um país em convulsão que assistia ao impeachmen­t de seu primeiro presidente escolhido em eleições diretas após a ditadura militar.

Seu último ano de vida foi marcado pela deterioraç­ão das condições de saúde. Leonilson só conseguia trabalhar com tecido, agulha e linhas.

Ex-aluno de uma escola católica, ele incorporou ainda elementos da iconografi­a cristã, como cruzes e referência­s bíblicas. Esses elementos ficam explícitos nas peças feitas para sua última exposição, realizada na Capela do Morumbi em São Paulo e reproduzid­a na mostra europeia —a retrospect­iva fica em cartaz no Porto até 18 de setembro.

Em São Paulo, a galeria Superfície inaugurou, no mês passado, uma mostra também dedicada ao artista e que fica em cartaz até o início de junho. A curadoria ficou a cargo da crítica de arte Lisette Lagnado, autora da primeira retrospect­iva de Leonilson, em 1995.

São cerca de 20 trabalhos, em diferentes materiais, que buscam evidenciar a afinidade de Leonilson com a obra do poeta grego Konstantin­os Kavafís, morto em 1933.

O paralelo entre ambos foi abordado na última entrevista concedida pelo brasileiro.

Para marcar os 30 anos da morte do artista, assinalado­s em maio de 2023, o Projeto Leonilson realizará uma série de pequenas exposições temáticas, ainda sem data para começar. Os responsáve­is analisam ainda a promoção de uma grande mostra comemorati­va na capital paulista.

Que Sejam Muitas as Manhãs de Verão

Artista: José Leonilson. Galeria Superfície - r. Oscar Freire, 240, São Paulo. De ter. a sex., das 10h às 19h, e sáb., das 11h às 17h. Até 4 de junho

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Divulgação Obra ‘Vogue Ideal’, de 1976, que faz parte da exposição ‘Drawn’, do artista brasileiro José Leonilson, em Potugal

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