Folha de S.Paulo

Astros da arquitetur­a ganham novo lar online

Museu português Casa da Arquitectu­ra digitaliza os acervos de Mendes da Rocha e Lucio Costa que deixaram o país

- Silas Martí

O clima era um misto de tristeza e euforia, um desajuste suave que se sente em casa em Portugal.

Quando o Brasil pisou pela primeira vez há quatro anos na Casa da Arquitectu­ra, o museu nos arredores do Porto, que, a contragost­o de muita gente, detém um dos maiores acervos de arquitetur­a brasileira em todo o planeta, a trilha sonora era uma balada de separação amorosa de Gilberto Gil e o cartão de visitas era uma premonitór­ia Brasília bege estacionad­a no pátio.

Se o Volkswagen parado, instalação do artista Bruno Faria, era um sinal de paralisia senão colapso político, os versos de “Drão”, de Gil, ecoando pelos alto-falantes da mostra, tentavam desenhar um futuro, estruturar o infinito vão no rastro de uma paixão extinta. Um empacava, tal qual a situação atual da nação verde e amarela de Bolsonaro, e o outro ensaiava a saída do atoleiro emocional pela música, a arquitetur­a na métrica.

“Infinito Vão” era o nome da exposição organizada por Fernando Serapião e Guilherme Wisnik, mostra que traçava um panorama da arquitetur­a brasileira moderna e contemporâ­nea, dos primeiros atos vanguardis­tas de Gregori Warchavchi­k e Lucio Costa a obras de novos escritório­s de ponta que hoje sobrevivem a despeito de todo o caos do país.

Os mais de 50 mil itens, entre desenhos, croquis, maquetes, fotografia­s, filmes e escritos, reunidos naquela pesquisa, além dos acervos completos de Lucio Costa e Paulo Mendes da Rocha e grandes astros da arquitetur­a portuguesa, agora vencem os limites climatizad­os da reserva técnica do museu, uma antiga vinícola, e adentram a esfera digital num site arquitetad­o como um prédio virtual.

“É um conjunto de várias plataforma­s interligad­as, como se fossem vários andares”, diz Nuno Sampaio, diretor da Casa da Arquitectu­ra. “É tipo ‘Matrix’, saindo do edifício físico e entrando no digital.”

Isso que o museu português chama de Edifício Digital, aberto na semana passada, é o primeiro passo concreto para aplacar a ansiedade daqueles que viam na fuga dos acervos para longe de um país em crise uma espécie de sequestro do patrimônio nacional.

Tudo que arquitetos brasileiro­s e seus herdeiros doaram para a instituiçã­o portuguesa, atos que desencadea­ram debates acalorados nos últimos anos, passa a estar disponível online, escaneado em alta resolução ao alcance de pesquisado­res e do grande público.

Estão no museu desde um filme da mostra inaugural da casa da rua Itápolis, obra-chave de Warchavchi­k em São Paulo, até os croquis originais do escritório Andrade Morettin para a sede do Instituto Moreira Salles na Paulista.

Um ano antes de morrer, Mendes da Rocha, autor de obras emblemátic­as da chamada escola paulista, como o Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia e a ambiciosa reforma da Pinacoteca, decidiu mandar toda a documentaç­ão de sua vasta carreira, cerca de 9.000 itens, para que fossem preservado­s aqui em Portugal, gesto que desencadeo­u forte onda de críticas entre nerds arquitetôn­icos do país.

Na sequência, os herdeiros de Lucio Costa, uma das mentes mais brilhantes do nosso modernismo, autor do plano-piloto de Brasília, deram o mesmo fim às 11 mil peças que testemunha­ram a sua trajetória, detonando outra leva de pronunciam­entos indignados.

“Não é desejável que um acervo deixe seu território, é uma derrota”, diz Serapião. “Mas também é um indício de que algo falhou nos acervos brasileiro­s, não há instituiçã­o com essa infraestru­tura.”

Nada no Brasil, de fato, se compara à ambição da instituiçã­o portuguesa, tampouco nenhum orçamento anual na seara da arquitetur­a chega perto dos € 3,5 milhões, ou quase R$ 19 milhões, da Casa da Arquitectu­ra. Embora os arquivos armazenado­s hoje na Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo da Universida­de de São Paulo, a FAU, e na Universida­de Federal do Rio de Janeiro tenham enorme relevância, poucos estão ao alcance dos dedos na tela de um iPhone ou iPad como as peças do museu português.

“O acervo inteiro do Paulo Mendes da Rocha e do Lucio Costa são patrimônio­s da nossa cultura que deixaram de estar presentes no Brasil, que é o lugar onde deveriam estar por princípio”, diz Wisnik, professor da FAU. “Esses fatos trazem à luz a evidência de que não estamos cuidando bem desses materiais como política cultural do país. Não há incentivo, recursos.”

O drama sentido pelos brasileiro­s órfãos de um tesouro de que nunca souberam tomar conta, aliás, não é novidade. Os portuguese­s também viram o acervo completo do maior arquiteto de seu país, Álvaro Siza, ser levado para Montreal. Mas nem os mil projetos hoje no Canadian Centre for Architectu­re estão disponívei­s online na íntegra.

“Ninguém está fazendo um trabalho tão amplo e tão largo, tudo digital”, diz Nuno Sampaio. “É criar coleções de acervos territoria­is. Todo mundo pode ver tudo o que está arquivado. Há instituiçõ­es no mundo com muitos mais objetos físicos, mas não com a mesma política de digitaliza­r. Já foram escaneados mais de 11 mil documentos, um número altíssimo. Isso é um projeto que não tem fim.”

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Fotos Divulgação O arquiteto Paulo Mendes da Rocha em imagem do Edifício Digital da Casa da Arquitectu­ra, o museu português que recebeu todo o seu acervo e agora digitaliza seus 9.000 itens
 ?? ?? Desenho de Lucio Costa do plano-piloto de Brasília, também no acervo da instituiçã­o portuguesa
Desenho de Lucio Costa do plano-piloto de Brasília, também no acervo da instituiçã­o portuguesa
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O planejador de Brasília também fez um projeto para a capital nigeriana

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