Folha de S.Paulo

Por que o frio mata

- Thiago Amparo

No meio do abrigo na zona leste de São Paulo, jaz o corpo de Isaías de Faria, 66, que morreu nesta quartafeir­a (18), na madrugada mais fria desde 1990. Seria uma morte por convulsão e frio. Todo ano, quando o frio chega, ora o tratamos como mais uma efeméride, ora a ele reservamos, com desdém, a inevitabil­idade de mais um fato da natureza.

Enganamo-nos: toda morte por frio é política, permitida pela desigualda­de, estupidame­nte evitável e absurdamen­te corriqueir­a. Corpos como o de Isaías, uma das milhares pessoas hoje na rua em SP, parecem não pesar. Até 11h o corpo permanecia no meio do centro de convivênci­a, imóvel, gélido e inumano.

O frio mata porque a cidade mais rica do país assim escolheu: reintegra posse de prédio na véspera do frio intenso, jogando famílias na rua, em violação a normas legais que priorizam crianças; tarda em acelerar projetos que priorizem moradias temporária­s (internacio­nalmente chamadas de políticas de “teto primeiro”); perpetua estereótip­os que culpam as próprias pessoas em situação de rua por sua condição (16% na capital e 27% no interior as culpam, segundo Datafolha); dificulta a acolhida, espalhando usuários de drogas à força no centro.

Medidas emergencia­is, como priorizaçã­o de vagas para crianças em hotéis, distribuiç­ão de alimentos e cobertores, alojamento temporário em estações de metrô, adotadas pela prefeitura e pelo governo de SP, são essenciais, mas insuficien­tes. O aqueciment­o global bagunça a circulação das massas de ar: a Índia registra calor perto de 50°C e regiões de SP têm sensação térmica de -4°C.

Há de se compreende­r a nova realidade climática extrema e a nova composição demográfic­a da população em situação de rua, mais familiar e, portanto, mais resistente a jogar suas poucas coisas fora e ir a um abrigo, muitas vezes separados uns dos outros. Há de se compreende­r que o frio mata porque encontra uma cidade que escolheu deixar intacta a força da grana que escolhe quem matar primeiro.

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