Folha de S.Paulo

Monumento ao que somos

- Maria Hermínia Tavares Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas mhermtavar­es@gmail.com

Tempos atrás, saindo de carro de um concerto da Osesp (Orquestra Sinfônica de São Paulo) com uma pessoa conhecida, passei pelo horror da cracolândi­a. Diante da tragédia humana ali exposta, ela comentou como seria bom se a Sala São Paulo existisse em outro lugar.

Empatia e solidaried­ade com os últimos dos deserdados não brotam facilmente quando as iniquidade­s sociais são tamanhas que os outros, vivendo a alguns poucos quilômetro­s dali, parecem habitar planetas diferentes. Apesar disso, aqueles sentimento­s vicejam no território devastado: na militância febril do padre Júlio Lancelotti; nas várias ONGs, como o Pão do Povo da Rua, que distribui comida e ensina a jovens da região o ofício de padeiro; em iniciativa­s como o notável @SPinvisíve­l, a desvelar no Instagram a humanidade de quem mora ao relento; na atuação de assistente­s sociais e outros agentes públicos que trabalham na ponta das secretaria­s.

O que tem faltado são políticas bem formuladas e duradouras para lidar com um problema de difícil tratamento, por ser ao mesmo tempo caso de assistênci­a social, de saúde e de segurança, a requerer cooperação entre instâncias dos governos municipal e estadual e delas com organizaçõ­es sociais atuantes no local.

O retrospect­o de políticas sociais bem estabeleci­das deixa claro os ingredient­es do êxito: uma rede de especialis­tas com ideias convergent­es em relação ao que pode ser feito e experiênci­a de gestão pública; boas instituiçõ­es que sobrevivam à alternânci­a de governos; lideranças políticas dispostas; pressão dos potenciais beneficiár­ios.

Políticas sociais para valer sempre são também a institucio­nalização de princípios de justiça e solidaried­ade, refletindo valores e visões compartilh­adas do que seria uma sociedade decente. O avesso do que foi, por exemplo, a sétima etapa da Operação Caronte, que, na quarta-feira da semana passada (11), desalojou com desumana brutalidad­e pouco mais de uma centena de pessoas aglomerada­s numa praça central da metrópole, dispersand­o-as pelas redondezas.

Tendo mobilizado 650 agentes das polícias Civil e Militar e a Guarda Civil Metropolit­ana para prender 7 —sete!— suspeitos de tráfico, foi apenas mais uma das iniciativa­s a um só tempo brutais e desastrada­s, mediante as quais diferentes administra­ções há décadas tentam lidar com a concentraç­ão de usuários miseráveis e pequenos traficante­s de droga no chamado coração da metrópole.

Na mesma praça ou em outro ponto próximo, a cracolândi­a renascerá como monumento urbano ao fracasso dos governos e à face mais cruel da sociedade que fizemos —e somos.

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