Folha de S.Paulo

Cala boca não morreu no STF

Tribunal mui amigo da liberdade de expressão avisou que pode levar jornalista­s à falência

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

“A liberdade de expressão não é absoluta”. Essa premissa se tornou o mantra de decisões judiciais sobre abusos da palavra. Incontestá­vel em abstrato, serve como ponto de partida, não ponto de chegada, de raciocínio jurídico.

Não é algoritmo hermenêuti­co. Exige critérios estáveis e longo caminho de análise de cada caso. Se reduzida a slogan retórico, vira arbitrarie­dade judicial.

Com base na premissa “liberdade de expressão tem limites”, Daniel Silveira, que ameaçou vida de ministros e incitou violência, foi condenado por crime. A mesma premissa orientou condenação, por dano moral, do jornalista Rubens Valente, autor de livro-reportagem lateralmen­te desabonado­r para reputação de ministro. Decisão de tribunal inferior que, de forma unânime, Moraes, Toffoli, Marco Aurélio e Rosa Weber se recusaram a analisar.

Os quatro ministros abandonara­m a “cláusula da modicidade” para cálculo do dano. Adotaram a “cláusula da maldade” e atenderam pleito do colega decano. Indenizaçã­o incomum que não serve para ressarcir qualquer coisa. Serve para calar e falir.

Jornalista não está isento de responsabi­lidade pelo que escreve, mas a decisão não demonstrou nem impropried­ades factuais, nem juízos ofensivos do livro. Parece ter inventado direito especial para ministro do STF: o direito de não se sentir ofendido.

O STF tem desfilado como mui amigo da liberdade de expressão e recitado decisões recentes: liberação da marcha da maconha, revogação da lei de imprensa, liberação de biografias não autorizada­s e do debate político em universida­de. Carmen Lúcia até escolheu a marchinha: “Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu.”

Tome cuidado com o autoelogio judicial.

O STF é menos amigo da liberdade do que quer fazer parecer porque mesmo seus acertos exalam a fumaça de voluntaris­mo populista. A proteção da liberdade pede mais que acertos avulsos.

Pede transparên­cia, coerência e alguma previsibil­idade, três bens jurídicos que o STF se recusa a produzir. Acertos avulsos não fazem jurisprudê­ncia se ministros não têm compromiss­o com suas declaraçõe­s de princípio.

O tribunal não desconhece a diferença entre delinquênc­ia e jornalismo, nem entre Daniel Silveira e Rubens Valente. Mas se você procurar, nas decisões, explicação da diferença, não vai achar três gotas de suor descritivo e analítico.

Frustrou, mas não chocou, o silêncio da advocacia progressis­ta (por auto declaração) no episódio. Ela transformo­u debate jurídico entre garantista­s e punitivist­as num embate sectário, mal disfarçado de jurídico, entre anti lava-jatistas e lavajatist­as. O sectarismo esmagou o grão de direito que restava. Os dois lados exibem hoje mais equivalênc­ias que diferenças.

No jargão preguiçoso, comprado pelo jornalismo, garantista virou o juiz que manda soltar, punitivist­a o juiz que manda prender, independen­temente da legalidade. E ilegalidad­es vão passando despercebi­das de um lado e de outro.

Só nesse universo alucinógen­o e pouco sincero é possível enxergar Gilmar Mendes e, claro, Augusto Aras, como restaurado­res do estado de direito e homenageá-los em eventos laudatório­s. Diante do imenso atentado à liberdade de imprensa praticado pelo mais poderoso dos magistocra­tas, melhor sair de fininho. Pau que bate em Moro não bate em Gilmar.

Arruinar vida do repórter que manchou sua reputação não é o principal objetivo de juiz-censor. Sua maior vitória, sempre, é deixar todos os outros jornalista­s com medo da próxima reportagem. Pode custar um milhão de reais. Ou mais, ou menos, ninguém sabe.

Sem estruturas de apoio, jornalismo vira assessoria da corte.

Quando o exercício da liberdade depende de heroísmo e conta bancária, o cala boca continua firme. No STF, o cala boca morreu só da boca pra fora. Flutua conforme a razão e sensibilid­ade de cada ministro. O tribunal não nos ajuda a ajudá-lo nem quando mais precisa.

| DOM. Elio Gaspari, Janio de Freitas| seg. Celso R. de Barros| ter. Joel P. da Fonseca| qUa. Elio Gaspari| qUI. Conrado H. Mendes| sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio Almeida| sáb. Demétrio Magnoli

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