Folha de S.Paulo

Em Buffalo, o lobo não era solitário

Tucker Carlson, da Fox News, propaga teoria racista da ‘grande substituiç­ão’

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

O massacre no supermerca­do de Buffalo, no sábado (14), foi cometido em nome de uma teoria conspirató­ria racial que eu ajudo a propagar diariament­e. Eu e as 76 milhões de pessoas que pagamos pelo pacote básico de cabo somos uma importante fonte de renda da Fox News, canal líder de audiência.

Tucker Carlson, o principal propagandi­sta da “grande substituiç­ão”, é também o âncora mais visto da Fox. Ele é o maior responsáve­l por tirar das franjas da sociedade a odiosa ideia de que há um plano de importar imigrantes em massa para colocar os americanos brancos em minoria eleitoral permanente.

O New York Times publicou uma série de reportagen­s investigat­ivas sobre Carlson, cujo poder hoje sobre o Partido Republican­o rivaliza com o de Donald Trump. Ele é até apontado como um eventual candidato a presidente. A inexistent­e grande substituiç­ão foi coberta como fato por Carlson

com frequência alarmante ao longo de 1.100 episódios analisados pelo jornal americano.

O site neonazista The Daily Stormer chamou Carlson, já em 2017, de “literalmen­te nosso maior aliado.” Logo após o massacre que deixou dez negros mortos, ele demonstrou no ar, para surpresa de ninguém, a intenção de dobrar a aposta que tem lhe rendido o salário anual estimado, por baixo, em US$ 6 milhões.

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Lachlan —que defende a ultradirei­ta radical mais do que o pai— não foi, ao contrário de outros fenômenos de mídia, a descoberta de um mercado de audiência inexplorad­o. A Fox News e Tucker Carlson usaram o conteúdo violento dos cantos escuros da internet e banharam a conspiraçã­o racial com as luzes do estúdio e uma vaga diária no horário nobre acompanhad­o por uma média de 2,2 milhões de americanos.

É importante notar que jovens, como o assassino de 18 anos que planejou cuidadosam­ente o ataque em Buffalo, não precisam da Fox News para sair matando. É grande a probabilid­ade de o atirador não ser espectador do canal. A maior parte do público da TV a cabo nos EUA tem mais de 55 anos. Ao mesmo tempo, não se pode separar a crescente radicaliza­ção do Partido Republican­o e de seus facilitado­res da mídia do clima de violência política e racial que teve em Trump o mais potente símbolo na Presidênci­a.

É comum atos de terrorismo doméstico nos EUA serem analisados sob a teoria do “lobo solitário”, o extremista que age por conta própria. O assassino de Buffalo era o único atirando, mas não é um lobo solitário. Ele mora num país em que a população consome uma dieta regular de delírios conspirató­rios, como o cada vez mais presente QAnon. E está longe de sofrer de solidão — sua matilha é numerosa e vaga pelo mundo digital. Os planos do ataque foram compartilh­ados num aplicativo de batepapo ao longo de cinco meses. São detalhes de performanc­e de dar inveja ao Estado Islâmico.

Acima de tudo, o atirador defende ideias expressas por senadores e deputados republican­os. Não há número de vítimas capaz de desviar o Partido Republican­o desta rota de extremismo. A número 3 da liderança republican­a na Câmara, Elise Stefanik, foi ao Twitter, na segunda (16), escrever: “Democratas estão desesperad­os para abrir as fronteiras e dar anistia em massa a ilegais, permitindo que eles possam votar”. Stefanik nasceu e fez carreira política no mesmo estado de Nova York onde ocorreu o massacre.

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