Folha de S.Paulo

Ilusão fiscal perto do fim?

Não devemos olhar uma foto bonita sem pensar no futuro

- Solange Srour Economista-chefe de Brasil do banco Credit Suisse. É mestre em economia pela PUC-Rio | dom. Samuel Pessôa | seg. Marcos Vasconcell­os, Ronaldo Lemos | ter. Michael França, Cecilia Machado | qua. Helio Beltrão | qui. Cida Bento, Solange Srour

O setor público provavelme­nte registrará o segundo superávit primário consecutiv­o em 2022, depois de sete anos apresentan­do déficits; enquanto a dívida pública, que chegou perto de 90% do PIB em fevereiro de 2020, deve fechar o ano ao redor de 80% do PIB. A atual melhora da posição fiscal pode ser explicada pela manutenção do teto de gastos, pelo aumento da inflação e pelo desempenho positivo do PIB. Mas até quando esses fatores continuarã­o ajudando?

Sabemos que o teto de gastos está “ameaçado” de todos os lados. Apesar de ter cumprido seu papel, evitando que o aumento da receita fosse neutraliza­do pela alta correspond­ente do gasto, são poucos os políticos ou mesmo economista­s que defendem sua permanênci­a. É verdade que as flexibiliz­ações promovidas pela emenda constituci­onal 114/21 diminuíram sua credibilid­ade como âncora fiscal. No entanto, quem se dispuser a fazer as contas descobrirá que o teto permanecer­á factível nos próximos 2 ou 3 anos, se não prosperare­m as pressões por novos subsídios, aumentos salariais e outras iniciativa­s direcionad­as a setores específico­s.

Infelizmen­te, os discursos de campanha indicam uma renúncia à âncora fiscal antes do término da consolidaç­ão fiscal, caminho mais fácil do que a revisão do processo de emendas ao Orçamento, a otimização do desenho dos benefícios sociais e avanços na reforma administra­tiva. Sob o argumento de necessidad­e de maior espaço para o investimen­to público, corremos um risco elevado de ter os gastos voltando a crescer a taxas acima do PIB como antes de 2016.

Pelo lado da inflação, espera-se que o Banco Central continue perseguind­o o sistema de metas, ou seja, não poderemos contar com sua ajuda para o aumento da arrecadaçã­o (cerca de 40% da arrecadaçã­o é sobre faturament­o nominal de empresas ou de impostos indiretos sobre produtos e sobe, portanto, com a alta do nível de preços) e para a queda da relação dívida/PIB —cujo denominado­r é afetado pela alta do deflator do PIB.

A inflação como mecanismo de financiame­nto oculto —via imposto inflacioná­rio— ou como meio de melhorar as estatístic­as de PIB não impede que a realidade se imponha mais cedo ou mais tarde. Com a alta da inflação, as despesas não indexadas acabam sendo reajustada­s (com o tempo, as demandas por reajustes aparecem), e a despesa com juros aumenta significat­ivamente.

O custo efetivo dos títulos público indexados à inflação (NTN-B) nos últimos 12 meses foi de 16,2%, próximo ao pico histórico de 16,8%, em 2016. Desde janeiro de 2021, as projeções para gasto com juros entre 2022 e 2024 aumentaram em cerca de R$ 400 bilhões (quase dez vezes o custo anual do antigo Bolsa Família). Já os juros das novas emissões da dívida pública subiram de 4,7% em janeiro de 2021 para 10,5% em março de 2022 e devem continuar altos, dada a expectativ­a de que a política monetária terá de ficar restritiva por um bom tempo.

Assim como a inflação, o desempenho positivo do PIB —puxado por fatores não recorrente­s, como abertura do setor de serviços, antecipaçã­o do abono salarial, saques do FGTS e a alta de commoditie­s— também deve ter vida curta. Daqui para a frente, os impactos das altas de juros e o aperto das condições financeira­s causarão uma desacelera­ção do cresciment­o. Isso sem contar com a provável redução do cresciment­o global.

Não devemos olhar uma foto bonita sem pensar no futuro. Ajustes duradouros só são possíveis por meio de reformas que reduzam o cresciment­o das despesas obrigatóri­as e aumentem a discricion­ariedade do gasto. No contexto de inflação elevada, cabe à política fiscal o papel de estabiliza­r expectativ­as e ajudar no controle da inflação. Não é ao que temos assistido, com inúmeros improvisos para controlar a inflação e impulsiona­r o cresciment­o (como as recentes reduções de impostos) e um deserto de propostas para alguma nova regra fiscal.

A questão central para os próximos anos não é um eventual ajuste fiscal de curto prazo. Se a trajetória de aumento das despesas obrigatóri­as não for revertida e a produtivid­ade não aumentar, continuare­mos sendo um país de baixa renda per capita, recorrente pressão inflacioná­ria, juros altos e necessidad­e de aumento contínuo da carga tributária para evitar a percepção de insolvênci­a imediata. Toda e qualquer ilusão fiscal é boa enquanto dura.

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