Folha de S.Paulo

Golpe de Estado e outros golpes

Fascínio da língua francesa pelo ‘coup’ enriqueceu nosso vocabulári­o

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Sem pensar muito, assim num golpe de vista, quais você diria que são as chances de um golpe de Estado prosperar no Brasil? Num golpe duro para a imagem internacio­nal de um país que até há poucos anos era encarado com grande simpatia, essa é a pergunta que o mundo inteiro está se fazendo.

A infeliz berlinda em que a palavra golpe é posta dia sim e outro também pelo presidente da República e seus aliados golpistas, tanto os de dentro quanto os de fora das Forças Armadas, tem um único mérito — que é linguístic­o e certamente menor, mas já que estamos aqui...

Na esteira do francês, um idioma curiosamen­te viciado na criação de expressões com base na palavra “coup”, golpe, nossa língua acabou por incorporar também um grande número dessas locuções. Algumas delas estão em uso desde o início da coluna e outras vêm a seguir.

Será que o candidato à reeleição, senhor de todos os golpes baixos, conseguirá dar o golpe de misericórd­ia na moribunda democracia brasileira, dodói desde o golpe de ar que pegou pela proa em 2016?

Ou será que nossa democracia, num golpe de mestre ou quem sabe até de sorte (estamos precisando), vai contragolp­ear e mandar o golpista para a cadeia?

Ainda nem mencionei, por razões de incompatib­ilidade semântica, o golpe do baú dos arrivistas e o golpe de arco dos violinista­s.

Palavra derivada do latim vulgar “colpus”, sopapo, soco, o substantiv­o golpe existe em português desde o século 13. No entanto, a proliferaç­ão de seu uso em locuções decalcadas do francês entraria pelo século 20 incomodand­o os puristas.

Por alguma razão que nem Lacan explica, o fascínio francófono pelo “coup” é tão grande que levou a uma inflação de expressões com ele no meio, algumas das quais viemos a importar.

Nem todas. A maioria ficou por lá, dos três golpes (“les trois coups”) que anunciam o início do espetáculo teatral ao idiomatism­o “faire d’une pierre deux coups” —literalmen­te “fazer de uma pedra dois golpes” ou, em tradução menos burra, matar dois coelhos com uma cajadada.

O “Trésor de la Langue Française” não diz quando nasceu o “coup d’État”, golpe de Estado, de grande sucesso na pauta de exportaçõe­s da língua de Napoleão. Mas sabemos que em 1640 seu uso, sem tradução, já era registrado no inglês.

Sabemos também que, em 1938, o purista português Vasco Botelho de Amaral recomendav­a em seu “Dicionário de Dificuldad­es da Língua Portuguesa” evitar esse galicismo. Preferia em seu lugar “atentado governamen­tal”. O Houaiss registra outra fórmula purista: “subversão da ordem constituci­onal”.

Claro que tudo isso conserva um interesse apenas histórico. A visão purista da língua podia ter boas intenções, mas sofreu um duríssimo golpe do tempo e se tornou matéria de comédia de boa qualidade.

Assim como as fórmulas “lance arrojado, resolução hábil” não substituír­am o golpe de mestre e “vista de olhos” não matou o golpe de vista — para citar outras sugestões de Amaral, o caçador de galicismos—, o golpe de Estado está além da consagraçã­o em português.

Sua utilidade é indiscutív­el. Para surpresa de muitos de nós, que empolgados com alguns avanços sociais desde a redemocrat­ização já julgávamos o Brasil menos atrasado e obscuranti­sta do que ele é, descobrimo­s à nossa volta uma paisagem passadista e, infelizmen­te, familiar.

Aqui, sem usar a locução golpe de Estado, não existe vocabulári­o político que pare em pé. Que desgraça.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil