Folha de S.Paulo

ONG acolhe homens vítimas de abuso sexual e amplia atenção psicológic­a

- Samuel Fernandes

sÃo Paulo Homens que são vítimas de violência sexual no Brasil ainda têm poucas opções para lidar com traumas que o abuso pode acarretar. O país só possui uma organizaçã­o não governamen­tal que atende gratuitame­nte esse público desde 2021, enquanto no sistema público o atendiment­o pode demorar.

Psicólogo que trabalha há quase 15 anos com violência sexual, Denis Ferreira foi o idealizado­r e um dos fundadores da Memórias Masculinas, ONG que atende homens trans e cisgêneros que foram vítimas de abusos sexuais.

“Em 2020, me dei conta de que se um homem foi vítima de violência sexual no Brasil não tem lugar para recorrer. Se ele não tiver condições financeira­s de pagar um processo de psicoterap­ia, ele não terá um espaço para falar sobre isso”, afirma.

Foi daí que nasceu a ideia de fazer a organizaçã­o, que já acolheu mais de cem pessoas. Ferreira diz que primeiro procurou se havia outras iniciativa­s desse tipo no país, mas não identifico­u nenhuma.

“Daí eu olhei modelos de organizaçõ­es no Reino Unido e em Portugal e comecei a compartilh­ar essa ideia com amigos próximos que trabalham com pesquisa, atendiment­o ou prevenção de violência sexual. Todos se apaixonara­m pela ideia”, conta.

Não haver organizaçõ­es com essa finalidade no Brasil não era um indicativo de que o problema não existia. Só entre 2009 e 2013, as notificaçõ­es de agressões em homens e meninos cresceram cerca de 290% —somente a partir de 2009 foi possível registrar casos de estupros em pessoas do sexo masculino.

A ONG foi fundada em setembro de 2020, mas começou os atendiment­os em 2021. De início, a vítima tinha acesso apenas a uma sessão com um profission­al voluntário.

Com o passar dos meses, foi visto que seria possível aumentar o número de sessões sem prejudicar novos atendiment­os —agora, cada homem pode ter até duas conversas. É possível pedir atendiment­o pelo site da organizaçã­o e as sessões são virtuais.

A ONG busca apoio financeiro para, no futuro, realizar o acompanham­ento terapêutic­o de longo prazo.

Para Ferreira, a Memórias Masculinas é necessária tanto por não haver outra organizaçã­o desse tipo no país, mas também porque os serviços públicos de saúde e assistênci­a social têm gargalos no acolhiment­o dessa população.

“Temos o SUS e o sistema de assistênci­a social. Ou seja, há uma rede organizada contra violações de direitos, mas não tínhamos nenhum serviço específico para homens.”

No caso da assistênci­a social, existem os Creas (Centros de Referência em Assistênci­a Social) que atuam no âmbito de violações de direitos, oferecendo serviços como atendiment­o psicológic­o e social. No entanto, Ferreira explica que, pela alta demanda, os homens vítimas de agressões sexuais podem demorar muito para acessar esses serviços.

“Se chegar um homem ao Creas e falar ‘eu fui vítima de violência sexual e quero falar sobre isso’, ele vai entrar para o fim de uma fila e não vai conseguir atendiment­o”, diz.

Em relação ao SUS, existe o Caps (Centro de Atenção Psicossoci­al), locais especializ­ados com serviços de psicoterap­ias. Da mesma forma, no entanto, o psicólogo afirma que pode existir uma grande dificuldad­e no acesso por homens agredidos sexualment­e.

O Ministério da Saúde afirma que o SUS “oferece cuidado integral à saúde da vítima, independen­temente do sexo, e suporte a qualquer tipo de violência sexual”.

A violência sexual em homens é mais rara em comparação com a sofrida por mulheres. Entretanto, homens que sofrem abuso também tendem a passar por repetição disso durante os anos.

“Em meu doutorado, estou comprovand­o a tese de que um homem que é vítima de violência sexual na infância e na adolescênc­ia tem até quatro vezes mais chance de também sofrer na idade adulta”, diz Ferreira.

A Folha conversou com um homem que foi vítima de violência sexual. Ele preferiu não ter sua identidade revelada e, neste texto, será chamado pelo nome fictício de Luiz.

O primeiro caso ocorreu quando ele tinha entre 3 e 4 anos. Um primo, que era em média dez anos mais velho que ele, começou a propor uma brincadeir­a que simulava um consultóri­o médico.

O primo de Luiz dizia que sentia dores na genitália e daí aconteciam as situações de abuso. O episódio se repetiu várias vezes até que foi descoberta por familiares, que não trataram o assunto de forma adequada, fazendo com que Luiz passasse anos em um quadro de tristeza profunda.

Anos depois, quando tinha em torno de 9 anos, Luiz voltou a sofrer violência sexual, dessa vez pelo irmão mais velho. Ele conta que foi estuprado várias vezes até que conseguiss­e ter uma idade para ser contrário às atitudes do irmão, que também o agredia fisicament­e e verbalment­e.

Anos mais tarde, passou novamente por uma situação de violência sexual envolvendo seu pai. Foi um caso isolado, mas igualmente traumático.

Foi só na vida adulta que ele procurou um psicólogo por conselho de seu companheir­o.

A dificuldad­e de Luiz de abordar o assunto não é um fato isolado. Ferreira cita um dado da ONG portuguesa Quebrar o Silêncio, que atende homens vítimas de abusadores, que aponta que um homem demora em média 25 anos para falar sobre esse trauma.

Existem alguns fatores que explicam esse fenômeno. “O primeiro é a cultura patriarcal e machista que faz com que o homem se afaste dos seus sentimento­s e não assuma um local de fraqueza ou fragilidad­e”, afirma Ferreira.

Por essa razão, homens normalment­e não se colocam em situação de vítima. “Ele precisa se assumir nessa posição de forte e viril, mesmo que ele esteja numa posição de agressão”, continua.

Outra explicação é a dificuldad­e da família de reconhecer situações de agressões sexuais, que tendem a acontecer dentro desse próprio meio. O silêncio piora ainda mais a situação da vítima.

“Um estudo indica que o fato de os meninos falarem menos sobre isso pode tornar a violência mais duradoura, porque o agressor percebe que não vai ser notificado, então continua realizando os atos.”

“Se ele [homem vítima de violência sexual] não tiver condições financeira­s de pagar um processo de psicoterap­ia, ele não terá um espaço para falar sobre isso

Denis Ferreira

psicólogo

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