ONG acolhe homens vítimas de abuso sexual e amplia atenção psicológica
sÃo Paulo Homens que são vítimas de violência sexual no Brasil ainda têm poucas opções para lidar com traumas que o abuso pode acarretar. O país só possui uma organização não governamental que atende gratuitamente esse público desde 2021, enquanto no sistema público o atendimento pode demorar.
Psicólogo que trabalha há quase 15 anos com violência sexual, Denis Ferreira foi o idealizador e um dos fundadores da Memórias Masculinas, ONG que atende homens trans e cisgêneros que foram vítimas de abusos sexuais.
“Em 2020, me dei conta de que se um homem foi vítima de violência sexual no Brasil não tem lugar para recorrer. Se ele não tiver condições financeiras de pagar um processo de psicoterapia, ele não terá um espaço para falar sobre isso”, afirma.
Foi daí que nasceu a ideia de fazer a organização, que já acolheu mais de cem pessoas. Ferreira diz que primeiro procurou se havia outras iniciativas desse tipo no país, mas não identificou nenhuma.
“Daí eu olhei modelos de organizações no Reino Unido e em Portugal e comecei a compartilhar essa ideia com amigos próximos que trabalham com pesquisa, atendimento ou prevenção de violência sexual. Todos se apaixonaram pela ideia”, conta.
Não haver organizações com essa finalidade no Brasil não era um indicativo de que o problema não existia. Só entre 2009 e 2013, as notificações de agressões em homens e meninos cresceram cerca de 290% —somente a partir de 2009 foi possível registrar casos de estupros em pessoas do sexo masculino.
A ONG foi fundada em setembro de 2020, mas começou os atendimentos em 2021. De início, a vítima tinha acesso apenas a uma sessão com um profissional voluntário.
Com o passar dos meses, foi visto que seria possível aumentar o número de sessões sem prejudicar novos atendimentos —agora, cada homem pode ter até duas conversas. É possível pedir atendimento pelo site da organização e as sessões são virtuais.
A ONG busca apoio financeiro para, no futuro, realizar o acompanhamento terapêutico de longo prazo.
Para Ferreira, a Memórias Masculinas é necessária tanto por não haver outra organização desse tipo no país, mas também porque os serviços públicos de saúde e assistência social têm gargalos no acolhimento dessa população.
“Temos o SUS e o sistema de assistência social. Ou seja, há uma rede organizada contra violações de direitos, mas não tínhamos nenhum serviço específico para homens.”
No caso da assistência social, existem os Creas (Centros de Referência em Assistência Social) que atuam no âmbito de violações de direitos, oferecendo serviços como atendimento psicológico e social. No entanto, Ferreira explica que, pela alta demanda, os homens vítimas de agressões sexuais podem demorar muito para acessar esses serviços.
“Se chegar um homem ao Creas e falar ‘eu fui vítima de violência sexual e quero falar sobre isso’, ele vai entrar para o fim de uma fila e não vai conseguir atendimento”, diz.
Em relação ao SUS, existe o Caps (Centro de Atenção Psicossocial), locais especializados com serviços de psicoterapias. Da mesma forma, no entanto, o psicólogo afirma que pode existir uma grande dificuldade no acesso por homens agredidos sexualmente.
O Ministério da Saúde afirma que o SUS “oferece cuidado integral à saúde da vítima, independentemente do sexo, e suporte a qualquer tipo de violência sexual”.
A violência sexual em homens é mais rara em comparação com a sofrida por mulheres. Entretanto, homens que sofrem abuso também tendem a passar por repetição disso durante os anos.
“Em meu doutorado, estou comprovando a tese de que um homem que é vítima de violência sexual na infância e na adolescência tem até quatro vezes mais chance de também sofrer na idade adulta”, diz Ferreira.
A Folha conversou com um homem que foi vítima de violência sexual. Ele preferiu não ter sua identidade revelada e, neste texto, será chamado pelo nome fictício de Luiz.
O primeiro caso ocorreu quando ele tinha entre 3 e 4 anos. Um primo, que era em média dez anos mais velho que ele, começou a propor uma brincadeira que simulava um consultório médico.
O primo de Luiz dizia que sentia dores na genitália e daí aconteciam as situações de abuso. O episódio se repetiu várias vezes até que foi descoberta por familiares, que não trataram o assunto de forma adequada, fazendo com que Luiz passasse anos em um quadro de tristeza profunda.
Anos depois, quando tinha em torno de 9 anos, Luiz voltou a sofrer violência sexual, dessa vez pelo irmão mais velho. Ele conta que foi estuprado várias vezes até que conseguisse ter uma idade para ser contrário às atitudes do irmão, que também o agredia fisicamente e verbalmente.
Anos mais tarde, passou novamente por uma situação de violência sexual envolvendo seu pai. Foi um caso isolado, mas igualmente traumático.
Foi só na vida adulta que ele procurou um psicólogo por conselho de seu companheiro.
A dificuldade de Luiz de abordar o assunto não é um fato isolado. Ferreira cita um dado da ONG portuguesa Quebrar o Silêncio, que atende homens vítimas de abusadores, que aponta que um homem demora em média 25 anos para falar sobre esse trauma.
Existem alguns fatores que explicam esse fenômeno. “O primeiro é a cultura patriarcal e machista que faz com que o homem se afaste dos seus sentimentos e não assuma um local de fraqueza ou fragilidade”, afirma Ferreira.
Por essa razão, homens normalmente não se colocam em situação de vítima. “Ele precisa se assumir nessa posição de forte e viril, mesmo que ele esteja numa posição de agressão”, continua.
Outra explicação é a dificuldade da família de reconhecer situações de agressões sexuais, que tendem a acontecer dentro desse próprio meio. O silêncio piora ainda mais a situação da vítima.
“Um estudo indica que o fato de os meninos falarem menos sobre isso pode tornar a violência mais duradoura, porque o agressor percebe que não vai ser notificado, então continua realizando os atos.”
“Se ele [homem vítima de violência sexual] não tiver condições financeiras de pagar um processo de psicoterapia, ele não terá um espaço para falar sobre isso
Denis Ferreira
psicólogo