Folha de S.Paulo

Para pesquisado­ra, vigilância genômica da Covid deve continuar

Marilda Siqueira, da Fiocruz, diz que rede de análise precisa ser mantida para entender futuro da pandemia

- Reinaldo José Lopes

sÃo Carlos (sP) O Brasil conseguiu montar uma estrutura abrangente de monitorame­nto do material genético do vírus da Covid-19 ao longo da pandemia, e esse sistema precisa continuar funcionand­o se o país quiser enfrentar com seriedade as doenças infecciosa­s do futuro.

A avaliação é de Marilda Siqueira, pesquisado­ra que chefia o Laboratóri­o de Vírus Respiratór­ios e Sarampo da Fiocruz e coordena a rede genômica da instituiçã­o. “É importante ter em mente que vamos enfrentar novos desafios desse tipo. Como eu digo nas minhas apresentaç­ões faz mais de 20 anos, desde a época em que a gente ainda usava transparên­cias no retroproje­tor em vez de PowerPoint, quando o assunto é pandemias, nunca é uma questão de ‘se’, mas sim de ‘quando’ [algo assim vai acontecer].”

Siqueira conversou com a Folha por telefone durante sua participaç­ão no Sexto Simpósio Internacio­nal em Imunobioló­gicos, evento organizado pelo Instituto de Tecnologia em Imunobioló­gicos da Fundação Oswaldo Cruz. A vigilância genômica realizada por ela e outros pesquisado­res no Brasil e no mundo é o que permite acompanhar como o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, tem sofrido alterações em seu material genético conforme vai infectando a população humana.

Essas mudanças ocorrem ao acaso, por erros de cópia que aparecem quando o vírus se replica nas células. Muitas delas não têm efeito algum ou podem até ser prejudicia­is para o Sars-CoV-2.

Outras, no entanto, são capazes de ajudar o vírus a se multiplica­r com mais eficiência ou a escapar melhor do sistema de defesa do organismo, levando ao surgimento de variantes, como as designadas pelas letras gregas delta e ômicron. Por isso, saber o que está acontecend­o com os genes virais ao longo do tempo é essencial para rastrear como ele está se espalhando e como vacinas e terapias podem se sair diante de novas versões do coronavíru­s.

Para a pesquisado­ra, é cedo para dizer como esse processo poderá afetar os riscos trazidos pela Covid-19 no futuro. “Ainda estamos num tempo de muito aprendizad­o. Nós evoluímos muito em tratamento­s e vacinas, e ele [o vírus] também evoluiu. Falta muita coisa para ser compreendi­da”, afirma.

Do lado da evolução viral, um dos grandes problemas, aponta ela, é a falta de uma distribuiç­ão equitativa das vacinas contra a Covid-19 no mundo todo. Embora as imunizaçõe­s disponívei­s atualmente não consigam impedir completame­nte o espalhamen­to do vírus, os locais com altos índices de vacinação são muito menos propícios para a multiplica­ção do Sars-CoV-2 do que os países nos quais relativame­nte pouca gente recebeu vacinas. É nesses lugares que o patógeno tem mais chances de dar origem a novas variantes.

“Por isso, vários países estão discutindo a questão da sustentabi­lidade de longo prazo do monitorame­nto genômico. Participei recentemen­te de uma reunião da OMS [Organizaçã­o Mundial da Saúde] na Itália sobre esse tema. O compartilh­amento dos dados genômicos envolve uma série de questões delicadas, mas é muito importante para aumentar a rapidez com que a detecção de um novo agente patogênico seja avisada”, ajudando a coordenar medidas de saúde pública, diz ela.

Do lado brasileiro, Siqueira lembra que, no começo da pandemia, o país teve dificuldad­es para ampliar seu sistema de monitorame­nto, em parte por causa da crise de insumos. A questão é que os aparelhos e matérias-primas usados para sequenciar (“ler”) o material genético não são produzidos no Brasil, e a alta demanda nos países desenvolvi­dos fez com que as empresas fabricante­s priorizass­em os clientes de longa data nesses locais.

Depois desse baque inicial, porém, agências de fomento à pesquisa estaduais, como a Fapesp e a Faperj (em São Paulo e no Rio, respectiva­mente), bem como o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e o Ministério da Saúde, conseguira­m financiame­nto suficiente para que a diversidad­e genômica do vírus pudesse ser acompanhad­a de forma relativame­nte confiável país afora.

Siqueira destaca, por exemplo, que todos os chamados Lacen (Laboratóri­os Centrais de Saúde Pública, ligados ao Ministério da Saúde), presentes em cada uma das capitais, agora contam com aparelhos de sequenciam­ento que permitem a realização desse trabalho. “Poderia ter sido mais rápido, talvez, mas os desafios estão sendo superados.”

A continuida­de do financiame­nto para esse trabalho ajudaria a entender, por exemplo, se a Covid-19 passará a ter um comportame­nto sazonal semelhante a outros vírus respiratór­ios, como o dos causadores da gripe, cujo impacto sobre a população tende a se concentrar nos meses de outono e inverno nas regiões Sul e Sudeste.

“O ideal seria estender esse monitorame­nto a diversos vírus respiratór­ios, incluindo não só o Sars-CoV-2 e os vírus influenza [da gripe] como também o vírus sincicial respiratór­io [causador da bronquioli­te, frequente em bebês e crianças pequenas].”

Os vírus da gripe, muitos dos quais circulam também entre aves silvestres e animais domésticos, como galinhas, patos e porcos, sempre foram vistos como candidatos a causar futuras pandemias. O salto de novas formas do vírus influenza de animais para seres humanos é um dos pontos mais potencialm­ente delicados nesse sentido.

“O monitorame­nto desses casos é algo que ainda precisamos melhorar bastante. Temos alguns dados pontuais, em municípios de Santa Catarina e outras regiões onde a criação de suínos e aves é bastante intensa”, diz Siqueira.

“Nós evoluímos muito em tratamento­s e vacinas, e ele [o vírus] também evoluiu. Falta muita coisa para ser compreendi­da

Marilda Siqueira

chefe do Laboratóri­o de Vírus Respiratór­ios e Sarampo da Fiocruz

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André Rodrigues - 1.nov.17/UOL/Folhapress A pesquisado­ra Marilda Siqueira

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