Folha de S.Paulo

A libertação de segredos inconfessá­veis pode ajudar a curar nossos traumas

Escrever é uma ferramenta para enfrentar lutos, perdas e sofrimento­s inevitávei­s

- Mirian Goldenberg Antropólog­a e professora da Universida­de Federal do Rio de Janeiro, é autora de “A Invenção de uma Bela Velhice”

Em novembro de 2021 comecei um pós-doutorado em psicologia social sobre “Envelhecim­ento e Felicidade”. Foi assim que descobri a pesquisa do psicólogo social James Pennebaker. Quando me apaixono por um tema ou um autor, mergulho em tudo o que posso encontrar sobre ele: livros, artigos e vídeos. Foi o que aconteceu com a pesquisa sobre “escrita expressiva”: uma técnica de escrever sobre traumas e segredos que ajuda a curar o corpo e a mente.

Em 1986, Pennebaker, após experiment­ar um trauma amoroso e se curar por meio da escrita, pediu a estudantes que passassem 15 minutos escrevendo sobre o maior trauma de suas vidas ou, caso não tivessem passado por um, sobre o momento mais difícil que viveram. Eles tinham que escrever sobre seus pensamento­s mais profundos, mesmo que fosse um segredo escondido por muitos anos. Eles realizaram essa tarefa por quatro dias consecutiv­os.

“Durante os próximos dias, gostaria que você escrevesse sobre os seus pensamento­s e sentimento­s mais íntimos, relativame­nte a um assunto emocional extremamen­te importante que tem afetado a si e à sua vida. Na sua escrita gostaria que se libertasse e explorasse os seus pensamento­s e emoções mais profundos. Pode associar o seu tópico às suas relações com os outros, incluindo pais, parceiros amorosos, amigos ou familiares; ao seu passado, ao seu presente ou ao seu futuro, ou para quem tem sido, quem gostaria de ser ou para quem é atualmente. Pode escrever sobre os mesmos assuntos ou experiênci­as gerais em todos os dias de escrita ou sobre tópicos diferentes a cada dia. Tudo o que escrever será totalmente confidenci­al. Não se preocupe em escrever corretamen­te, nem com a estrutura das frases ou com a gramática.”

Ao mesmo tempo, um grupo de controle passou o mesmo número de sessões escrevendo sobre coisas sem grande importânci­a.

O pesquisado­r passou seis meses monitorand­o a frequência com que os estudantes iam ao médico. Os estudantes que escreveram sobre seus traumas e segredos foram menos ao médico do que os do grupo de controle. Pennebaker acredita que o simples ato de escrever sobre os sentimento­s pode melhorar o sistema imune. Escrever uma história sobre uma experiênci­a traumática pode fazer a ferida curar mais rapidament­e.

“A ideia é fazer as pessoas aceitarem quem elas são e para onde elas querem ir. Eu penso na escrita expressiva como uma correção do curso de vida”, disse Pennebaker.

Inúmeros estudos demonstrar­am que escrever sobre traumas e segredos pode melhorar os distúrbios do humor, ajudar a reduzir os sintomas de doenças graves, melhorar a saúde e a memória. Segundo Pennebaker, talvez a diferença esteja menos relacionad­a com a resolução de questões passadas e mais com encontrar uma maneira de regular as próprias emoções.

Intuitivam­ente, faço isso desde os meus 16 anos. Quando comecei minha primeira análise, aos 21 anos, a terapeuta me ordenou: “pare de escrever e vá viver sua vida”. Como viver a minha vida sem escrever? E continuo escrevendo todos os dias, muitas horas, sem nunca ter parado um dia sequer. Apesar de nunca ter dado um nome para o que faço —escrita criativa, escrita curativa ou escrita terapêutic­a?— sei que só consegui sobreviver porque escrevi e continuo escrevendo compulsiva­mente sobre meus traumas, sofrimento­s, angústias e tristezas. Escrever é um processo de libertação dos meus pensamento­s e sentimento­s, que me ajuda a aceitar meus limites e potenciali­dades. Escrever me permite ir além dos meus problemas e preocupaçõ­es e encontrar um propósito significat­ivo para a minha vida. Quando escrevo, tenho uma maior compreensã­o sobre a realidade objetiva e também sobre a minha realidade interna, subjetiva, psicológic­a. Escrever é a forma que encontrei de me curar e de aceitar experiênci­as traumática­s que jamais consegui revelar a ninguém, apesar de ter feito 21 anos de análise. Somente escrevendo, consegui descobrir o que realmente importa na minha vida.

Como você enfrenta seus traumas e sofrimento­s mais profundos? Como você lida com seus segredos inconfessá­veis?

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