Folha de S.Paulo

Livro traz uma Christiane F. menos puta e mais literária

Leslie Jamison beira o realismo histérico ao descrever o vício ao longo dos séculos

- Vivian Masutti

LIVROS A Reabilitaç­ão ★★★★ ★

Autora: Leslie Jamison. Trad.: Santiago Nazarian. Ed.: Globo Livros. R$ 64,90 (496 págs.)

De um lado está um balanço do inferno da autora. Ela poderia escrever verso ou prosa sobre os milagres da existência. Mas, no lugar disso, Leslie Jamison se depara com o suor dos tremores da abstinênci­a, o vômito da doença, o mijo e a merda nas calças. Metade da vida escondida em apagões. Fígado inchado por toxinas. Infiltraçã­o rumo à morte.

Saindo da vida real e entrando na das estrelas, em “A Reabilitaç­ão”, temos um punhado de heróis bêbados e intoxicado­s. Billie Holiday vendo a seringa de heroína cair de suas mãos nos anos 1940. Amy Winehouse muito louca no vexatório show que tentou fazer na Sérvia, em 2011.

Do outro lado, está o glamour que sempre relaciona o poeta com o álcool. Como exemplo, está “Uísque e tinta”, artigo com o qual a revista Life adula o poeta John Berryman —e, claro, elogia o uísque.

Aí, a droga é vista como como um portal metafísico. Como a cocaína de Stephen King para escrever “O Iluminado”. Ou o brilho com o qual Charles Jackson compartilh­a sua relação com o álcool no romance “The Lost Weekend”.

No meio do caminho desse barato todo, está uma racionaliz­ação entre o um lado e o outro lado descritos nos quatro parágrafos anteriores —enquanto King, já em seus anos de sobriedade confessa que não perdeu seu dom ao deixar de beber e se drogar, Winehouse, apesar do incisivo refrão de “Rehab” (“I won’t go, go, go”), tentou várias vezes a internação para se tratar.

É buscando esse meio-termo, entre crítica literária e memorialís­tica, que está o novo romance da americana, que mostra como as fronteiras do assunto ainda são enuviadas por uma série de tabus, ainda que evidencie o álcool mais como doença e não sabedoria.

Uma espécie de Christiane

F. —menos prostituíd­a e mais literária—, a autora, que hoje escreve para o New York Times Book Review e é diretora do programa de não ficção da Universida­de Columbia, subverte a narrativa tradiciona­l ao combinar sua trajetória com a história política e cultural e pitadas um tanto pop.

Por isso, apesar da coragem de se despir, como a escritora e blogueira alemã, Jamison também já arrancou da crítica especializ­ada comparaçõe­s com Joan Didion e Susan Sontag pelo estilo lancinante e os comentário­s inusitados.

Ou mais. Numa comparação mais contemporâ­nea e jornalísti­ca, em “A Reabilitaç­ão” a autora americana parece representa­r na luta contra o álcool e contra as drogas o mesmo papel que Andrew Solomon assumiu ao reunir encicloped­icamente tudo o que existe sobre depressão em seu clássico “O Demônio do Meio-Dia”, finalista do prêmio Pulitzer de não ficção.

Jamison vai atrás da literatura médica para traçar um panorama da cultura da reabilitaç­ão, que movimenta milhões de dólares todos os anos ao mesmo tempo em que segrega ainda mais a divisão entre ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres.

“A peça que falta no quebracabe­ça interior” foi a forma com que certa vez o escritor David Foster Wallace, um dos mais influentes e inovadores das últimas décadas, responsáve­l pelo avanço no realismo histérico ou pós-modernismo recherché, se referiu ao álcool.

O que “A Reabilitaç­ão” faz, em suma, é retirar essa peça que falta do ambiente psicológic­o de todos os personagen­s de que trata (inclusive a própria autora) para a levar justamente a um campo de análise sob a luz do pós-modernismo, oferecendo ao leitor um emaranhado de referência­s que partem, em grande parte, do impacto do capitalism­o sobre os indivíduos.

Ou seja, ela esquadrinh­a todo um sistema econômico baseado em infiltrar a sensação de incompletu­de para vender a ideia de que o consumo é a resposta para a tal peça que falta no nosso quebra-cabeças.

 ?? Divulgação ?? Imagem da capa de ‘A Reabilitaç­ão’
Divulgação Imagem da capa de ‘A Reabilitaç­ão’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil