Folha de S.Paulo

Beleza do ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ restaurado vê o Brasil que cria pobres diabos

- Helen Beltrame-Linné

Paloma Rocha, responsáve­l pela restauraçã­o de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, exibido nesta quarta-feira em Cannes, começou a sessão citando seu pai —“o cinema novo é eterno”. E assim pareceu desde os primeiros fotogramas da belíssima cópia do filme de Glauber Rocha que “mostrou o rosto do cinema brasileiro no Festival de Cannes”.

De fato, o segundo longa de Glauber —apresentad­o no lendário festival apenas dois meses depois do golpe militar de 1964— acabou se tornando o representa­nte oficial de um movimento que se considera inaugurado juntamente com “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, e “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, ambos de 1963.

Mas “Deus e o Diabo” não conquistou apenas pelo contexto político. O filme foi capaz de apresentar ao mundo um movimento cinematogr­áfico nacional equivalent­e, sem exagero, à nouvelle vague. Assim como a nova onda francesa, o cinema novo era uma tentativa de reconstrui­r um país por meio da sétima arte.

A ambição grandiosa do longa fica evidente desde o começo —um close-up extremamen­te realista de uma carcaça de gado morto é acompanhad­a de uma peça de Villa-Lobos, dando ao ponto de partida da história um tom alegórico.

O uso da música do compositor continuará em momentos potentes da narrativa, mas será combinado com outro elemento, um cantoneiro sertanejo escrito pelo próprio Glauber Rocha e musicado e cantado por Sérgio Ricardo.

Essas vinhetas funcionarã­o como uma condução narrativa, ilustrando episódios ocorridos em elipses e até introduzin­do novos personagen­s, como Antônio das Mortes.

A trama do filme tampouco é corriqueir­a. Um vaqueiro se revolta contra a injustiça da vida e embarca numa aventura pelo sertão, encontrand­o um fanático líder religioso e até o cangaceiro Corisco, o histórico comparsa de Lampião.

O incidente que dispara a jornada de Manuel é compreensí­vel. Por causa da seca, algumas das vacas das quais ele toma conta morrem ao tentar se saciar numa água contaminad­a. O coronel a quem o vaqueiro reporta se recusa a arcar com a perda e, numa das melhores falas do nosso cinema, resume a lógica que historicam­ente sustenta o Brasil desde os portuguese­s. “Não tem o que discutir. As vacas que morreram são as suas.”

A partir desse ponto, Manuel vai de desgraça em desgraça, tentando encontrar um caminho para a sobrevivên­cia, mas embarcando sempre em outros tipos de ladainha. O curioso é que ele se revolta contra o cativeiro econômico do seu coronel para se submeter à ideologia de diferentes líderes que são vários lados da mesma moeda e acabam fazendo a ele a mesma promessa —o sertão vai virar mar.

A sua primeira parada é o Monte Santo, onde uma multidão de miseráveis se submete a um líder religioso que promete a eles uma chuva de ouro no sertão e impõe ao vaqueiro penitência­s como subir uma ladeira de joelhos, carregando uma pedra na cabeça.

Em seguida, ele passa ao domínio do cangaceiro Corisco, que em sua sede de vingança ataca ferozmente pessoas “do bem”, numa cena cuja crueldade parece antecipar o que viria anos depois em Laranja Mecânica, de 1971 —ainda que Stanley Kubrick explore a situação de jeito mais explícito.

Mas, se o protagonis­ta de “Laranja” estava preso numa lógica urbana político-criminosa, o pano de fundo de “Deus e o Diabo” é sem dúvida a natureza naquilo que tem de mais avassalado­r, o imenso sertão nordestino, retratado numa aridez que chega a machucar os olhos —mesmo aqueles seduzidos pela belíssima textura proposta pela fotografia em preto e branco.

Nesse sentido, chega a ser curioso pensar que a cena final, se filmada hoje, talvez viesse em cores, para aumentar o contraste com o ambiente que o espectador ocupou durante as primeiras duas horas.

Além da fotografia, o longa impression­a por uma mise-en-scène que explora a linguagem do cinema sem abrir mão de uma profunda teatralida­de na forma como explora ícones, objetos e sombras.

Há ainda elipses corajosas e manobras inovadoras, como a inserção de Lampião como personagem pela voz de Corisco —que reencena, num diálogo consigo mesmo, conversas tidas com o líder morto.

A restauraçã­o está impecável e era aguardada havia anos. Até agora, o longa só estava disponível em DVDs lançados no início dos anos 2000. Contudo, vale dizer que um trabalho de mixagem seria bem-vindo —por vezes o caos sonoro perturba, assim como a falta de integração entre som ambiente e dublagem dos atores em algumas cenas.

O processo de restauro foi financiado de forma privada com auxílio de um site de cultura de Brasília, algo que, mesmo no Brasil de Bolsonaro em 2022, não deixa de parecer chocante. Que não haja interesse ou dinheiro público para resguardar uma das maiores obras da história do cinema nacional é assustador.

Igualmente chocante é a atualidade do Brasil retratado por Glauber Rocha. Ainda que tenha havido avanços no desenvolvi­mento do sertão nordestino ao longo das últimas décadas, a era do atual presidente fez o que pôde para barrar qualquer tipo de avanço e autonomia dessa região.

É inevitável pensar em Manuel, o pobre vaqueiro que, depois de muitas aventuras, termina por receber o apelido de Satanás. Mas se engana quem pensa que é ele o Diabo do título. Manuel é apenas um pobre diabo, com “D” minúsculo, como tantos que nosso Brasil ainda insiste em produzir.

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Fotos Divulgação Maurício do Valle, de pé, e Yoná Magalhães, ao fundo, em cena de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’
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Maurício do Valle vive Antônio das Mortes em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’
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