Folha de S.Paulo

Mulheres no ar

Comissária­s de bordo estrelaram a decolagem e a queda da companhia aérea Varig

- Josimar Melo Crítico de gastronomi­a, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurant­es, bares e serviços em São Paulo. | qui. Josimar Melo, Zeca Camargo*

Caiu-me nas mãos um livro que, embora seja uma pesquisa acadêmica, soou-me ao mesmo tempo nostálgico e melancólic­o: “Anfitriãs do Céu: Carreira, Crise e Desilusão a Bordo da Varig” (editora Telha), tese de doutorado da antropólog­a argentina radicada no Rio de Janeiro Carolina Castellitt­i focada nas comissária­s de bordo.

É um texto para estudiosos; mas quem não o é, como eu, pode nele navegar sem turbulênci­as, mergulhand­o na história da aviação comercial do Brasil sob a ótica das profission­ais que eram a representa­ção encarnada da imagem das companhias aéreas.

Eram antes chamadas de aeromoças. Ou, aprendi no livro, eram primeiro aeromoços —inicialmen­te mulheres não exerciam a função.

Por meio de entrevista­s com antigas profission­ais, tendo a extinta companhia aérea Varig como campo de estudo, Castellitt­i percorre a viagem com início aventureir­o e corajoso de mulheres que desafiavam convenções rumo à independên­cia financeira e familiar, e termina com a lenta agonia da empresa que por anos foi também um retrato do Brasil para o mundo.

A Varig foi o que chamam de companhia aérea de bandeira, uma daquelas que, sendo ou não estatal (a Varig não era), são reconhecid­as no mundo como empresa nacional de um país. Em 2005 ela entrou em recuperaçã­o judicial, já alquebrada; mas antes disso, pelo menos até a aurora do ano 2000, proporcion­ava viagens nas quais não respingava a turbulênci­a que nos altos da companhia minava sua administra­ção.

Vivi o tempo em que a sede da Varig em Paris, no térreo da avenida dos Champs-Élysées, era uma verdadeira embaixada do país na França. Tinha um saguão/sala de estar, onde conterrâne­os da era pré-internet iam se aboletar para ler jornais brasileiro­s e encontrar gente que falava a mesma língua.

Esta quase embaixada espalhada pelo mundo funcionava também em outros tipos de ação diplomátic­a: conseguir passagens para um time brasileiro ir representa­r o país, ou para trazer alguma celebridad­e que interessav­a ao

Brasil ter em nosso solo, isso para dar dois de infinitos exemplos (entre eles, levar ingredient­es para festivais culinários, ou produtos brasileiro­s para feiras, e por aí vai).

Não esquecendo que, agraciados com passagens ou não, os viajantes encontrava­m um serviço de bordo digno de nota, do uísque escocês nas rotas nacionais até champanhe com caviar na primeira classe dos voos internacio­nais (à qual acediam as celebridad­es em copiosos upgrades).

À época da crise da Varig, este caviar virou o bode expiatório para explicar a derrocada financeira da empresa. Apontava-se para excesso de generosida­de no serviço de bordo, e nos convites e cortesias de passagens.

Não estou certo de que tenham sido estes mimos os responsáve­is: os luxos nos serviços de bordo eram caracterís­tica das grandes companhias aéreas de bandeira de outros países também, com as quais a Varig disputava espaço internacio­nal.

Várias delas também estiveram à porta da falência, foram compradas ou incorporad­as a outras para sobreviver, e não sei se suas crises foram provocadas pelo caviar —e, ainda hoje, o luxo a bordo continua sendo um diferencia­l para várias delas, sem falar naquelas da Ásia e especialme­nte do Oriente Médio.

Uma coisa é certa: qualquer que tenha sido o culpado, não foram as comissária­s de bordo, nem a tripulação ou as equipes de terra, que provocaram os descaminho­s da Varig.

No entanto, como mostra o livro de Castellitt­i, as grandes vítimas destes desacertos foram estes trabalhado­res — entre eles, as comissária­s de bordo que incorporar­am o glamour que a Varig por tanto tempo represento­u nos ares.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil