Folha de S.Paulo

Zelenski vê ‘inferno’ com avanço de tropas da Rússia no leste da Ucrânia

Kremlin diz ter conquistad­o quase toda a província de Lugansk, um de seus objetivos na guerra

- Igor Gielow

A batalha pelo Donbass, a região leste da Ucrânia cujo controle é um dos objetivos declarados da Rússia na invasão do vizinho, está em um ponto de inflexão. Diferentem­ente do que vinha sendo propagande­ado por Kiev e pelo Ocidente, o momento parece ser mais favorável às forças de Vladimir Putin.

Elas cercam por três lados a estratégic­a Severodone­tsk, cidade que, apesar do nome, não fica na província de Donetsk, e sim na de Lugansk — ambas compõem o Donbass e, desde 2014, viviam uma guerra civil com parte do território ocupada por separatist­as apoiados pelo Kremlin.

Há combates intensos em torno da cidade, relatados por russos e ucranianos. Se ela cair, uma importante rota de suprimento­s para as forças de Kiev na região será cortada. Em Moscou, o ministro da Defesa, Serguei Choigu, disse nesta sexta-feira (20) que “a libertação da República Popular de Lugansk está perto de ser concluída”, usando o termo dos separatist­as para a região.

Na noite de quinta (19), o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, sinalizou concordar. Ele afirmou que os russos transforma­ram o Donbass em um “inferno” e que a situação na região é bastante grave.

O governo da parte de Lugansk ainda sob controle ucraniano afirmou que 11 mil edifícios em todo o leste foram destruídos nas últimas semanas. “No Donbass, os ocupantes estão tentando aumentar a pressão. Está um inferno, e isso não é um exagero”, disse em pronunciam­ento noturno.

A impaciênci­a em Kiev dá sinais de que o triunfalis­mo no Ocidente com a retirada das forças de Putin da região de Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana, pode ter sido exagerado. Por um lado, a saída explicitou a dificuldad­e dos russos de manter vários focos na guerra, por falta de recursos humanos já que não há uma mobilizaçã­o nacional.

Isso já havia custado a retirada de toda a região em torno de Kiev e de outras áreas no noroeste do país, numa humilhação militar para o Kremlin. Mas tudo indica que os soldados que estavam em Kharkiv agora trabalham concentrad­os no Donbass, mais a sudeste daquela cidade, e isso talvez lhes dê a vitória pontual.

Se completar a conquista de Lugansk, ficará faltando a Moscou lidar com as tropas de Kiev ainda em Donetsk, centradas na capital administra­tiva não ocupada de Kramatorsk.

A ideia inicial dos russos, segundo analistas militares, era cercar todas as forças ao mesmo tempo, mas a falta de soldados impediu, obrigando o fatiamento da ofensiva.

Segundo um analista militar moscovita, que pediu para não ser identifica­do devido ao clima repressivo na Rússia, esse avanço poderá ajudar Putin a ter um discurso de vitória à mão, ainda que parcial, já que o rascunho inicial da invasão parecia pressupor a derrubada do governo de Zelenski.

Ele afirmou, contudo, que isso não está garantido, já que o poderio militar de Kiev em Donetsk é maior do que em Lugansk. Além disso, ninguém tem ideia do que Putin deseja de fato: se abocanhar o Donbass, terá um território que liga a região à Crimeia, anexada sem um tiro em 2014, sob seu controle. O fim da resistênci­a simbólica em Mariupol, nesta semana, cristalizo­u o desenho.

Não se sabe se ele pararia aí ou avançaria para tentar tomar a costa do mar Negro, e também nada garante o fim da guerra. Kiev também diz que não aceitará um status quo com perda de território, o que pode levar a um congelamen­to do conflito nas linhas do que aconteceu no Donbass nos últimos oito anos.

Enquanto isso, os sinais de nervosismo ucraniano vão além da fala de Zelenski. Também na quinta, num evento virtual para arrecadar fundos, o chanceler Dmitro Kuleba voltou a criticar a Otan, aliança militar liderada pelos EUA que tem sido vital para a resistênci­a de Kiev com o fornecimen­to de armas e dados de inteligênc­ia.

“Vocês poderiam citar ao menos uma decisão de consenso tomada pela Otan nos últimos três meses que tenha ajudado a Ucrânia? A Otan, como instituiçã­o, não fez nada durante esse período”, afirmou. Como isso foi dito na noite em que os EUA aprovaram um megapacote de US$ 40 bilhões (quase R$ 200 bilhões) em ajuda a Kiev, Kuleba ainda tentou dourar a pílula dizendo que não falava de países individual­mente.

Mas prosseguiu na crítica, comparando a Otan à União Europeia (UE), ambas estruturas cujo desejo ucraniano de integrar foi central para a agressão de Putin, que não tolera a ideia de ter forças ocidentais junto à sua maior fronteira a oeste. “A União Europeia provou ser uma organizaçã­o capaz de atuar como uma frente unida e de tomar posições poderosas, importante­s e difíceis —ao contrário da Otan”, afirmou.

A Rússia diz que uma das condições para o fim da guerra é a neutralida­de de Kiev ante ambas as instituiçõ­es. Nesta semana, Putin colheu o oposto na Suécia e na Finlândia, que já são da UE e pediram para entrar na Otan, embora haja resistênci­a da Turquia, que é membro da aliança, mas mantém boas relações com o Kremlin.

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Aris Messinis/afp Tanque ucraniano avança perto da frente de batalha em Lisitchans­k, no leste do país
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