Folha de S.Paulo

O que diz o noticiário chinês

Conhecer o país passa por entender as mensagens que o governo quer transmitir

- Tatiana Prazeres Executiva na área de relações internacio­nais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Cultivei um hábito nos últimos três anos vivendo em Pequim. Lia, todos os dias, a imprensa chinesa em inglês. Começou despretens­iosamente, como curiosidad­e, mas a leitura regular se revelou um aprendizad­o valioso.

É uma experiênci­a sociológic­a fascinante ler o China Daily de ponta a ponta por, digamos, uma semana. Em algum grau, é informativ­o. É cívico. Em parte, é ótimo para quem precisa de um pouco de escapismo.

Você termina de ler e se sente otimista com o mundo —e, claro, com a China. Para não ser injusta, o China Daily traz, eventualme­nte, notícias sobre corrupção ou um desastre ambiental num rincão da China —e elas são acompanhad­as de referência­s sobre punições e medidas para prevenir esses problemas.

O Global Times, por sua vez, é útil para tomar a temperatur­a do pensamento do Partido Comunista Chinês. Lembro-me de que, em 2020, o então secretário de Estado americano mereceu um editorial intitulado “[Mike] Pompeo, um inimigo da paz mundial”. Ele havia dito que o partido era uma ameaça à humanidade —e o GT se encarregou da resposta.

O South China Morning Post, de Hong Kong, é uma brisa de ar fresco na cobertura sobre a China. Costumo brincar que se trata do jornal mais importante do mundo do qual você nunca ouviu falar. O SCMP preenche uma lacuna na cobertura jornalísti­ca sobre a China porque é chinês (mesmo que de Hong Kong) e também é plural —trata de temas sensíveis, publica opiniões pró e contra Pequim.

O SCMP foi comprado em 2016 pelo grupo Alibaba, então liderado por Jack Ma, que é membro do partido —e isso não parece ter afetado a linha editorial. A Lei de Segurança Nacional para Hong Kong, de 2020, que levou ao fechamento de outros veículos, não silenciou o SCMP.

Nos últimos três anos, chama a atenção nos jornais em inglês da China continenta­l o cresciment­o de uma visão negativa sobre o cenário internacio­nal. Consolidou-se a mensagem de que o Ocidente não aceita a ascensão chinesa. O proverbial ganha-ganha, típico do discurso chinês sobre relações externas, foi perdendo espaço.

Ganharam destaque críticas aos problemas americanos. Tensões raciais e atentados com armas de fogo nos EUA, por exemplo, têm ampla repercussã­o —a ponto de fazer com que pais chineses tenham receio de mandar seus filhos para estudar em universida­des americanas, como me contou um aluno de Yunnan.

A pandemia fez com que, incansavel­mente, a imprensa chinesa contrastas­se o caos no exterior com a normalidad­e no país, sobretudo entre 2020 e 2021. Agora, o foco é valorizar os resultados desses dois anos. Nesta

semana, com lockdowns ainda em vigor, o destaque do China Daily foi para o fato de que 1 milhão de americanos morreram de Covid. O tom triunfalis­ta da superiorid­ade da resposta chinesa arrefeceu, mas a essência da mensagem não mudou.

Um sinólogo uma vez me disse que, na China, o jornalista é um profission­al que vê seu papel como parte da construção da imagem do país. Aprende-se assim desde a faculdade. Quando comentei essa visão com um amigo jornalista chinês, ele me devolveu a provocação: se os estrangeir­os já fazem o papel de criticar a China, o seu seria o de oferecer o contrapont­o.

Não são necessário­s três anos de leitura para chegar a essa conclusão, mas, goste-se ou não, conhecer a China de hoje passa por entender as mensagens que o governo quer transmitir.

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