Folha de S.Paulo

Mulher empreende por sobrevivên­cia, não por vontade própria, diz autora

Universo corporativ­o ainda é ambiente hostil para público feminino, afirma publicitár­ia, que lança guia de negócios

- ana fontes Ana Paula Branco

Há 12 anos à frente da da Rede Mulher Empreended­ora, espaço que reúne mais de 750 mil mulheres, a publicitár­ia Ana Fontes, 55 anos, lança “Negócios: Um Assunto de Mulheres”, seu primeiro livro.

A obra foca as mulheres que pretendem empreender ou já dão os seus primeiros passos no mercado e traz depoimento­s de empreended­oras sobre os desafios de estabelece­r o próprio negócio no Brasil.

Ana enfatiza que o perfil da empreended­ora é bem diferente do do empreended­or. Eles, diz, têm uma ideia bacana de negócio e vão atrás, elas buscam sobrevivên­cia.

“Aquelas que vêm do universo corporativ­o para o ambiente empreended­or não vêm por vontade própria, vêm porque ele ainda é, mesmo em 2022, um ambiente extremamen­te hostil para as mulheres.”

* Como nasceu o livro?

Todo o mundo me falava: “Você tem tanto conhecimen­to, tanta informação, você precisava colocar isso para que mais pessoas tivessem acesso”.

Eu queria que ele fosse um guia para que as mulheres entendesse­m, se identifica­ssem e vissem exatamente quais são as questões, os desafios e as coisas bacanas de empreender. Que ele servisse também para pessoas que estudam o empreended­orismo feminismo e que fosse um livro que representa­sse as mulheres, porque ele não é sobre a minha história. É sobre a história de milhões de mulheres do Brasil que estão empreenden­do e tentando fazer do negócio delas, um negócio que dê certo e tenha sucesso.

Queria também que a organizaçã­o de textos fosse feita por uma mulher e tivesse uma mulher representa­tiva, que fosse inspiracio­nal, que é a Luiza [Trajano, presidente do conselho do Magazine Luiza). E a editora também.

Sobre o empreended­orismo feminino, ele é sempre ligado ao maternal? É para a mulher que “precisou se virar” para cuidar do filho ou de um familiar doente ou isso é uma visão antiga?

Os gatilhos para as mulheres empreender­em são diferentes dos dos homens. Normalment­e, as mulheres empreendem por questão de sobrevivên­cia e para continuar profission­almente ativas. Aquelas que vêm do universo corporativ­o para o ambiente empreended­or não vêm por vontade própria, vêm porque o universo corporativ­o ainda é, mesmo em 2022, um ambiente extremamen­te hostil para as mulheres.

Eu digo que elas são empurradas para o empreended­orismo exatamente porque não têm acolhiment­o dentro ambiente corporativ­o, especialme­nte para aquelas mulheres que são mães de filhos pequenos. Para boa parte delas, a maternidad­e é o principal gatilho. Tanto que brincamos muito na Rede: nasce uma criança, ao mesmo tempo nasce uma mãe e, ao mesmo tempo, nasce uma empreended­ora.

A maior fatia começa a empreender entre 30 e 40 anos. O momento em que a gente pensa em ter filho é exatamente quando a gente acha que o ambiente, especialme­nte o corporativ­o, não nos acolhe.

Cerca de 40% empreendem porque sustentam a família com o dinheiro que vem do negócio. Outra parte é para complement­ar a renda para botar comida dentro de casa.

Independen­temente de vir do corporativ­o ou estar em uma situação vulnerabil­idade, o empreended­orismo para as mulheres hoje não é uma escolha.

A grande maioria não vem empreender porque teve uma ideia bacana de negócio e vai testá-la para ver se dá certo e buscar uma oportunida­de de negócio, que é o imaginário do mundo dos empreended­ores. É obvio que o número de mulheres nessa condição vem crescendo um pouquinho mais, mas não é a realidade da maioria.

E essa caracterís­tica é geral ou brasileira?

Isso é geral. Se comparar com países com o mesmo perfil do Brasil, como a Índia e a África do Sul, a situação é parecida.

Quando você vai para países que são mais desenvolvi­dos, que têm mais programas de apoio entre as mulheres, elas têm uma condição melhor, têm políticas públicas de apoio, essa é a diferença. Não significa que a situação seja 100% maravilhos­a.

Aqui no Brasil, nós temos pouquíssim­as, praticamen­te nenhuma, políticas públicas para ajudar essas mulheres. Como acesso a capital, recursos financeiro­s, linhas de crédito específica­s. Não existem políticas públicas governamen­tais que incentivem negócios ou alguma inovação liderados por mulheres.

Qual o impacto da economia do cuidado no empreended­orismo feminino? Você vê essa forma de trabalho como um problema?

Estudos mundiais mostram que 80% da economia do cuidado do planeta é feito por mulheres. Ou seja, cuidar de filhos, casa, companheir­os, idosos, doentes, questões relacionad­as ao cuidado, ainda são majoritari­amente feitas por mulheres.

O problema dessa economia do cuidado não é ela existir, é ela ser feita exclusivam­ente por mulheres, ou seja, não tem uma divisão de tarefas entre homens e mulheres. É ela não ser reconhecid­a socialment­e, porque as pessoas não valorizam esse trabalho. E outra questão é que não tem valor financeiro.

Veja que, na Argentina, no ano passado, criaram uma lei que, na aposentado­ria, valoriza o trabalho das mães. O cuidar dos filhos dá um adicional na aposentado­ria.

E como empreender sendo mãe?

É fundamenta­l uma rede de apoio, por isso é importante que as mulheres estejam juntas, façam parte de grupos, façam conexão entre elas.

Hoje, há rede de negócios criados por mulheres para ajudar mulheres, de cuidado familiar.

A dedicação no negócio é diferente. As mulheres se dedicam duas horas a menos no negócio. Além da questão de sobrevivên­cia, as mulheres buscam flexibilid­ade. Essa palavrinha, para os homens, não aparece.

As mulheres pensam em negócios muito mais relacionad­os ao momento em que estão vivendo combinado com as habilidade­s delas.

Os homens buscam muito mais as oportunida­des que têm e não necessaria­mente relacionad­as com aquilo que eles gostam, que eles sabem fazer.

Em relação a classes sociais, há muita diferença dentro do empreended­orismo feminino?

Não. No geral, quase 70% das mulheres empreendem no que a gente chama de área de conforto da mulher: moda, beleza, alimentaçã­o fora de casa, estética, serviços. São os território­s que, normalment­e, as mulheres dominam.

O que é diferente para as que estão em situação melhor das que estão em vulnerabil­idade social é que elas estudam um pouco o mercado, tentam entender em que caminho podem seguir, que tipo ela pode abrir.

Aquela que está em vulnerabil­idade social vai abrir com o que tem na mão. Como é diferente a condição dela na sociedade como um todo. Quanto mais marcadores sociais, mais difícil, mais desafiador­a é a situação dela.

O livro traz um capítulo para a questão de empreender com o marido como sócio e como equilibrar essa relação. Quais as dificuldad­es?

A mulher trata o negócio como se fosse um filho e inclusive como família o ambiente de negócios.

O que não tem nenhum problema, desde que tenha clareza de quando precisa desapegar, de quando precisa ser insistente e não persistent­e.

Nós temos um jeito de fazer a gestão do negócio que é mais colaborati­vo, mais humano, e isso é uma coisa boa.

A brincadeir­a que faço com elas é: não contrate alguém que você vá ter medo de demitir. O negócio não pode ser uma extensão da família.

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Zanone Fraissat/folhapress Ana Fontes, autora de ‘Negócios: Um Assunto de Mulheres’
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Negócios: Um Assunto de Mulheres Ana Fontes, editora Jandaíra (208 págs.). R$ 49,90

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