Folha de S.Paulo

Confronto e erosão como método

Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, foi descaradam­ente plagiada pelo bolsonaris­mo

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP

Bolsonaro pratica uma concepção primitiva de política, baseada no confronto, na intimidaçã­o dos adversário­s e no arbítrio, em detrimento de uma política fundada na competição eleitoral, no debate público e na legalidade.

Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, que marcou a ascensão de regimes totalitári­os nos anos 1930, repaginada pela extrema direita norte-americana nas últimas décadas — com sua idolatria fálica às armas, à supremacia racial e a ideias liberticid­as—, foi descaradam­ente plagiada pelo bolsonaris­mo.

Para os praticante­s dessa concepção pervertida de política, a democracia constituci­onal —que pacifica e institucio­naliza a competição política e impõe limites jurídicos àqueles que exercem poder— aparece como um entrave inaceitáve­l ao poder soberano devendo, portanto, ser suprimido. A verdadeira soberania, de acordo com Schmitt, não pode ser confinada pela Constituiç­ão, pelo império do direito. Ela somente se expressa no contexto do estado de exceção.

Afirmar que se trata de um modelo primitivo de política, não significa, portanto, dizer que é uma concepção destituída de método. No caso brasileiro, o constituci­onalismo democrátic­o vem sendo atacado de duas formas: o intenso confronto político deliberado e a erosão difusa da ordem jurídica e da integridad­e das instituiçõ­es.

Politicame­nte, o bolsonaris­mo conduz um intermináv­el confronto com as instituiçõ­es e os valores da democracia liberal. Promove uma guerra cultural permanente pelas redes sociais e, ao mesmo tempo, ataca as instituiçõ­es de controle e aplicação da lei, com o objetivo de minar a credibilid­ade, e a capacidade dessas instituiçõ­es de exercerem a função de freios contrapeso­s ao poder presidenci­al.

O ataque às urnas eletrônica­s, ao Supremo e aos ministros que têm conduzido o processo eleitoral é parte essencial dessa estratégia de fragilizaç­ão institucio­nal. Como demonstra relatório da organizaçã­o Democracia em Xeque, publicado esta semana, após Bolsonaro propor ação de abuso de autoridade contra Alexandre de Moraes, o ministro vem sendo alvo de uma gigantesca onda de ataques nas redes sociais, voltada a intimidar e restringir sua credibilid­ade. Dentro dessa mesma estratégia, o bolsonaris­mo fomenta a animosidad­e das Forças Armadas contra o Supremo e o TSE.

No plano jurídico, por sua vez, o governo tem empregado as prerrogati­vas presidenci­ais, como decretos, nomeações, restrições orçamentár­ias, estabeleci­mento de sigilo e ordens para institucio­nais, para subverter a ordem constituci­onal. Essa estratégia parece ser uma consequênc­ia da incapacida­de do governo de promover mudanças mais amplas com apoio de ambas casas do Congresso Nacional.

Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas, do combate ao trabalho escravo, da reforma agrária, da Polícia Federal e, especialme­nte, na área das armas de fogo, prejudican­do não apenas a política de segurança pública, como fortalecen­do milícias e grupos radicaliza­dos que ameaçam a democracia.

Trata-se, assim, de um perigoso avanço em direção ao estado de exceção, como decorrênci­a da associação entre confronto político sistemátic­o e erosão jurídica como método de subversão da ordem constituci­onal, que precisa ser imediatame­nte contido, sob o risco de compromete­r definitiva­mente o edifício democrátic­o brasileiro. Esse é o desafio colocado às elites políticas, econômicas e sociais brasileira­s neste momento.

Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas

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