Folha de S.Paulo

Síntese de todas as contradiçõ­es

Em livro, Fernando Haddad busca nexos entre vida, espécie e linguagem

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

O que falta no Brasil é ambição. José Arthur Giannotti repetia que os pesquisado­res brasileiro­s não estavam condenados a estudar somente a situação dos chapeleiro­s de Sorocaba no século 19. Pensar as grandes questões mundiais é condição para superar o provincian­ismo, dizia.

Saúde-se então o arrojo de Fernando Haddad em “O Terceiro Excluído - Contribuiç­ão para uma Antropolog­ia Dialética” (Zahar, 285 págs.). O livro busca a síntese entre vida, humanidade e linguagem; nada menos que a gênese, o motor e o sentido da máquina do mundo.

Eis alguém que aproveitou os longos meses de confinamen­to para ler os clássicos e a bibliograf­ia atualizada da biologia, da antropolog­ia e da linguístic­a. Do seu glossário constam termos como teleomátic­o, memeplex, cladogênes­e e estocástic­o. Dos 160 autores que cita, um só é brasileiro, Viveiros de Castro.

O título do livro é quase uma denúncia: “O terceiro [está] excluído”. Ele alude a uma lei da lógica formal: ou um enunciado é verdadeiro, ou então a sua negação é verdadeira. É impossível uma terceira via, algo que seja e não seja; que esteja e não esteja.

Ciência exata, a biologia se move segundo essa lógica. Dados um determinad­o ambiente e condições, as moléculas, células, genes, órgãos e seres se comportam sempre da mesma forma. A vida é produto de múltiplas determinaç­ões.

Na tradição filosófica, porém, a contradiçã­o é possível e modifica a realidade. É a dialética. Uma tese gera uma antítese que, ao ser também ela negada, propicia uma síntese —que por sua vez pode ser negada. A sociedade é síntese de múltiplas contradiçõ­es.

Já o subtítulo, “contribuiç­ão para uma antropolog­ia dialética”, aponta para a síntese que Haddad vislumbra: tendo em conta elementos da ciência exata (biologia), é necessário introduzir na ciência humana (antropolog­ia) a dialética existente no pensamento discursivo (linguístic­a).

Uma das questões que norteiam o livro parte da genética: se a espécie humana compartilh­a os mesmos cromossomo­s, tem idêntica materialid­ade, porque seus membros não se veem como iguais, se disputam e até escravizam os “diferentes”? A resposta de“O Terceiro Excluído” érica.

Ele faz uma viagem que começa na microscopi­a genética, passa pelas sociedades primitivas e termina nas macroestru­turas gramaticai­s. Percorre Darwin, Boas, Humboldt, Marx, Lévi-strauss, Chomsky e dezenas de outros pensadores. A jornada comporta riscos.

Um deles diz respeito ao conhecimen­to de Haddad. Bacharel em direito, mestre em economia e doutor em filosofia, ele não usa nada do direito e da economia, e pouco da filosofia. Prefere saciar sua curiosidad­e e se aventura no que sabe menos, biologia e linguístic­a.

Com isso, aprende e ensina, mas resume e tateia. O que (dialeticam­ente) é bom e ruim. Bom porque o leitor neófito nos temas pode acompanhál­o. Ruim porque às vezes passa impressão de superficia­lidade, de fichar o que leu há pouco, de passar amil por autores e teorias demasiado ecléticas.

Outros enãoéa sem-cerimônia com que o livro prescinde da história. Como se atém apenas aos grandes marcos —a revolução neolítica e a industrial—, os conceitos com que lida se bastam, ou são opostos a outros conceitos, também eles genéricos e sem conteúdo histórico.

Isso ocorre quando analisa o nacionalis­mo, referindos­e de passagem às “guerras convencion­ais contemporâ­neas de um regime marxista revolucion­ário contra o outro, envolvendo Vietnã, Camboja e China”. A frase é oca porque despreza a situação concreta do conflito entre os países, por sinal marxistas pro forma.

O esvaecimen­to da história é tão mais esquisito porque Haddad enfatiza que a dialética só existe no tempo. Na imagem famosa, a semente da maçã é a fruta em embrião; a maçã madura nega sua semente; e, ao ser comida, ela nega o seu estado anterior, é uma síntese.

Ao não historiciz­ar, o livro se despolitiz­a. Até fala de “novas bases teóricas da emancipaçã­o humana, sem as quais aquilo que se entende por horizonte utópico não vai ocupar a imaginação progressis­ta”. Mas as novas bases teóricas partiriam do marxismo? O horizonte utópico é socialista? Os trabalhado­res são a força progressis­ta?

Se a resposta for sim, por que os eufemismos? Se for não, qual seria o novo sistema? Não se sabe: “O Terceiro Excluído” se limita a pregar o diálogo. Seria bom se Haddad retomasse essas questões num outro livro que cogita escrever, agora sobre o desenvolvi­mento —tanto do mundo como de Sorocaba.

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Bruna Barros

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