Folha de S.Paulo

Ser feminista é estragar os prazeres dos outros, afirma a estudiosa Sara Ahmed

Autora se preocupa com o uso da liberdade de expressão como forma de legitimar a intolerânc­ia

- Autora: Sara Ahmed. Trad.: Jamille Pinheiro Dias, Sheyla Miranda, Mariana Ruggieri. Ed.: Ubu. R$ 99 (448 págs.); R$ 39,90 (ebook) Yasmin Santos Viver uma Vida Feminista

O que nos leva ao feminismo é o que nos despedaça. Essa é uma das ideias iniciais de Sara Ahmed, escritora anglo-australian­a para quem é justo essa proximidad­e com o ser que permite que o feminismo ajude as mulheres a se reerguerem, a juntarem seus pedaços estilhaçad­os pelo patriarcad­o.

Autora de “Viver uma Vida Feminista”, livro publicado há cinco anos no Reino Unido e que chega ao Brasil agora em edição da Ubu, Ahmed quer trazer o feminismo para dentro de casa e, por isso, investiga a relação da sociedade com aquelas que chama de “feministas estraga-prazeres”.

“Se apontar que violência, poder ou injustiça causa infelicida­de, feministas estraga-prazeres estão dispostas a causar infelicida­de”, resume.

Ahmed argumenta que, ao questionar o status quo, o feminismo ganhou uma carga negativa, de ser contrário à felicidade. Logo, se tornar feminista é estragar os prazeres dos outros; é atrapalhar os esforços dos outros.

Sendo assim, a felicidade de uma menina deveria estar relacionad­a a usar roupas “de menina”, brincar com brinquedos “de menina” e se casar e construir uma família com um menino —sob a desculpa de que isso tornaria a sua vida mais “fácil”. Mas é só isso que ela pode querer?

“Quando a felicidade se torna o nosso objetivo ou o que temos que causar, ela passa a ser algo muito restritivo. Às vezes me refiro à ‘alegria de estragar prazeres’ como uma experiênci­a enérgica que adquirimos quando vivemos uma vida feminista”, comenta.

Além do feminismo, a acadêmica, filha de um paquistanê­s muçulmano com uma britânica branca, centra seus estudos em teoria crítica da raça e pós-colonialis­mo. Na divisão étnica e racial britânica, Ahmed está na categoria “brown”, que engloba também pessoas de diversas ascendênci­as, entre elas os indianos.

Logo nas primeiras páginas do livro, ela divide com o público uma decisão política, a de não usar o trabalho de nenhum homem branco como referência para a pesquisa —ela lembra só um conto macabro dos irmãos Grimm.

“Quando digo homem branco me refiro a uma instituiçã­o”, escreve. Seu livro dá protagonis­mo àqueles e àquelas que contribuír­am para a genealogia intelectua­l do feminismo e do antirracis­mo. “Minha política de citações me deu mais espaço para me ocupar das feministas que vieram antes mim. A citação é a memória feminista”, afirma.

Em 2022, cinco anos depois da publicação original do livro, a autora se preocupa com a escalada da extrema direita pelo mundo. “No Reino Unido, a supremacia branca e a transfobia fazem parte do mainstream. Liberdade de expressão está sendo usada como ferramenta para legitimar visões que violentam tantas pessoas, negros, imigrantes, queer, pessoas não binárias”, diz.

Ahmed também critica a forma como o feminismo é entendido como algo que o Ocidente deu ao mundo. Isso se manifesta na forma como costumam supor que ela foi influencia­da por sua família materna, de origem britânica, branca e cristã, a ser feminista. Na verdade, é graças à sua tia Gulzar Bano, poeta e ativista muçulmana.

“Com ela, aprendi que feminismo é sobre nos abrir para o que podemos ser, feminismo é uma forma de se enxergar e se compromete­r a desafiar a violência e a injustiça”, conta. Na universida­de, ela se encantou pelas produções de intelectua­is negras e de outras identifica­ções étnicas e raciais. “Audre Lorde e Gloria Anzaldúa inflamaram minha imaginação ao unirem poesia e teoria crítica como uma forma de dar sentido às suas vidas e lutas.”

Quando o governo britânico instituiu que centros de pesquisa precisaria­m contar com profission­ais de diversidad­e, lá estava Sara Ahmed exercendo essa função. No livro, ela define seu trabalho como o de uma “encanadora profission­al”. Ela descobria como e onde as coisas ficavam presas. A diferença é que Ahmed não tinha poder para desentupir “canos”. Sua tarefa era tão somente redigir relatórios, deixar um “rastro de papel”.

Em 2016, a falta de pragmatism­o diante de assuntos urgentes fez com que ela pedisse demissão da Goldsmiths, da Universida­de de Londres. A escritora era diretora do centro de pesquisa feminista da instituiçã­o. “Renunciei em protesto contra o fracasso em resolver o problema do assédio sexual”, anunciou em seu blog, chamado Feminist Killjoys.

Segundo Ahmed, houve inquéritos para investigar alguns casos, mas não houve nenhum reconhecim­ento público da extensão do problema. À época, a imprensa britânica noticiou que acusações semelhante­s foram feitas pela primeira vez nos anos 1990, mas ignoradas pela universida­de.

“Quando falo sobre o problema do assédio sexual, não estou falando de um indivíduo desonesto, ou dois, nem mesmo de uma instituiçã­o desonesta. Estamos falando sobre como o assédio sexual se torna normalizad­o e generaliza­do —como parte da cultura acadêmica”, escreveu.

Agora, como pesquisado­ra independen­te, Ahmed continua conversand­o com profission­ais que trabalham com diversidad­e. A sensação de que estão apenas arranhando a superfície de um problema é um denominado­r comum, mas ainda assim já é algo.

“Podemos mostrar que as organizaçõ­es não estão fazendo o que dizem que fazem. Podemos usar suas próprias declaraçõe­s de compromiss­o para pressionar a fazer mais e melhor”, sugere a autora.

Depois da publicação de “Viver uma Vida Feminista” no Reino Unido, Ahmed se dedicou a uma pesquisa sobre os custos de reclamar —“Complaint!” foi lançado em 2021 no país—, o que a deixou mais otimista. “Podemos dividir os custos da reclamação”, afirma. “Podemos apoiar uns aos outros e nos tornar mais inventivos trabalhand­o juntos.”

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Reprodução Detalhe de ‘Feminist Party’, da artista Anita Steckel

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