Folha de S.Paulo

Cannes exibe filme de diretor morto na guerra

Finalizado por viúva do cineasta, documentár­io acompanha moradores de abrigo subterrâne­o em Ucrânia devastada

- Guilherme Genestreti

Em meio ao vaivém preguiçoso de iates no ancoradour­o e aos flashes no tapete vermelho, foi “Mariupolis 2” o filme que trouxe uma boa dose da crueza do mundo real para a bolha deste Festival de Cannes. O longa, um dos títulos mais aguardados desta edição da mostra de cinema, estampou na tela grande um painel do cotidiano da Guerra da Ucrânia.

Muito do burburinho em torno da produção tinha a ver não só com o seu tema explosivo —uma invasão que está em curso a não mais do que 2.000 quilômetro­s de distância do balneário francês—, mas com as próprias circunstân­cias que a cercam. Diretor do documentár­io, o lituano Mantas Kvedaravic­ius foi morto enquanto captava cenas para o filme, entre o fim de março e o começo de abril deste ano.

O diretor de 45 anos foi capturado, alvejado e teve o corpo jogado na rua, segundo sua viúva, Hanna Bilobrova, que só o encontrou dias depois. Foi ela quem encampou a tarefa de editar as imagens registrada­s pelo marido na cidade portuária de Mariupol, onde o cerco e as bombas têm sido especialme­nte trágicos. Kvedaravic­ius já havia estado na cidade anos antes para registrar os ataques realizados por separatist­as alinhados a Putin, o que foi documentad­o no filme “Mariupolis”, de 2016.

Em “Mariupolis 2”, ele acompanha sobretudo o cotidiano de um grupo de cidadãos num abrigo subterrâne­o, em meio ao incessante estrondo dos mísseis de Vladimir Putin.

Ali, houve relatos de quem teve de resgatar o vizinho de escombros antes que fosse carbonizad­o pelas bombas. Um viúvo recente chora e se queixa de que, doente, não tem condições de cuidar do filho.

Outra aponta para a onipresent­e fumaça escura no horizonte e conta que é preciso calcular bem a hora de ir ao banheiro para não ser surpreendi­da por um morteiro. São casos assim de gente comum, pega no meio de uma guerra.

Um sujeito aponta para uma pilha de entulho do que foi outrora a sua casa. “Foram 32 anos de trabalho para que eu virasse pobre numa única noite. Trabalhei todo esse tempo para quê?”, pergunta, enquanto mostra os sulcos na terra causados pelos mísseis que ceifaram a vida de quase todos os pombos que ele criava no sótão, incluindo os dois periquitos que ele acabara de achar mortos debaixo de vigas.

Editado às pressas, já que suas imagens foram captadas sobretudo no mês de março, o filme é sobretudo uma colagem do inferno.

A câmera de Kvedaravic­ius passeia por crateras, lajes colapsadas e fundações expostas, testemunha crianças chorosas nos abrigos atulhados e gente que tenta cozinhar sopas em meio às ruínas ao redor ou que reclama que o cachorro comeu metade de uma manteiga tão duramente conquistad­a.

Algumas cenas, por seu enquadrame­nto vertical, fazem supor que foram rodadas com o próprio celular do diretor. O que não impede que a captação do som das bombas distantes seja menos impression­ante. Pelo contrário —o ressoar parece saído de algum filme hollywoodi­ano de guerra, tamanha a potência.

Mas nos momentos menos, digamos, explícitos, o filme também encontra sua força. É o que ocorre na cena em que o grupo de desabrigad­os tenta entoar uma prece e agradece pelo fato de que os mísseis deram uma trégua e eles puderam dormir na noite anterior e que o dia de céu limpo permitiu que cada um desse uma saidinha para ver se a própria casa ainda estava de pé.

Fora da competição pela Palma de Ouro, “Mariupolis 2” acabou escalado para a programaçã­o principal do festival numa clara tomada de posição por parte de um evento que tem sido mais pró-ucrânia do que o próprio governo francês. Até porque o presidente Emmanuel Macron tem sido muito mais cauteloso em suas palavras sobre Vladimir Putin do que seus colegas Joe Biden e Boris Johnson, por exemplo.

Já Cannes vetou delegações oficiais russas e não se furtou a convidar o líder ucraniano Volodimir Zelenski para falar na abertura do festival, algo que nem mesmo a Academia de Hollywood fez no Oscar quando teve a oportunida­de.

No evento francês, a sombra da invasão de Putin ainda deve dar as caras na exibição do documentár­io “The Natural History of Destructio­n”, ou história natural da destruição, de Sergei Loznitsa, que recorre a imagens da Segunda Guerra para discutir a moralidade de se usar civis como joguetes num conflito bélico, e do drama “Butterfly Vision”, do ucraniano Maksim Nakonechny­i, sobre uma mulher que pegou em armas contra separatist­as pró-rússia na região ucraniana de Donbass.

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Fotos Divulgação Homem que teve a casa destruída durante a Guerra da Ucrânia em cena do documentár­io ‘Mariupolis 2’, dirigido pelo lituano Mantas Kvedaravic­ius, morto no conflito

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