Folha de S.Paulo

Cassação é a única resposta que se espera da Câmara de São Paulo

Cristófaro deve perder mandato por agir em desconform­idade com o decoro

- Roberto Dias da Silva Advogado e professor de direito constituci­onal da FGV-SP

Em setembro de 2019, um vereador, no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, chama outro parlamenta­r de “macaco de auditório”. Em maio de 2020, um vereador xinga uma enfermeira durante uma visita a um conjunto residencia­l no bairro do Bom Retiro. Aos berros, a chama de “negra safada”. Neste mês, numa sessão online do Legislativ­o, um vereador deixa o microfone aberto e vaza a seguinte frase dita por ele: “É coisa de preto, né?”. Basta procurar no noticiário para saber que tais manifestaç­ões saíram da boca de uma mesma pessoa: Camilo Cristófaro (Avante-SP).

A Constituiç­ão reprova tais condutas de forma muito veemente. O repúdio ao racismo —ao lado do terrorismo— foi alçado a um dos princípios que regem o Brasil nas suas relações internacio­nais. No capítulo que cuida dos direitos e deveres individuai­s e coletivos, ela estabelece que “a prática do racismo constitui crime inafiançáv­el e imprescrit­ível, sujeito à pena de reclusão”.

A legislação penal, a partir daí, define os crimes de racismo e de injúria racial. Estas são formas de concretiza­r um dos objetivos da República brasileira: a promoção do bem de todos, sem preconceit­os de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina­ção.

Também é verdade que a Constituiç­ão garante a inviolabil­idade dos parlamenta­res por suas opiniões, palavras e votos. As imunidades são prerrogati­vas essenciais à democracia e servem como proteção do próprio Parlamento, viabilizan­do o livre debate de ideias para que se dê o amplo exercício da função legislativ­a e de fiscalizaç­ão. No entanto, elas não são uma carta em branco para que os parlamenta­res possam ofender, ameaçar, intimidar e, muito menos, destilar preconceit­o de raça ou de cor.

O Supremo Tribunal Federal, em recente decisão no caso do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), explicitou esse entendimen­to ao condenálo por uma série de condutas, como ameaça a ministros da corte. O tribunal também entendeu que o parlamenta­r não estava protegido pela imunidade, pois as intimidaçõ­es não eram opiniões que se relacionav­am com o exercício do mandato.

Atos como esses ou como os praticados pelo vereador Cristófaro estão sujeitos à reprovação em mais de um campo do direito. Além de uma possível condenação criminal, o parlamenta­r está sujeito a sanções civis e, também, a perder o mandato. A perda deve ocorrer se o parlamenta­r agir em desconform­idade com o decoro. Isso é o que prevê a Constituiç­ão, no que é seguida pela Lei Orgânica de São Paulo. E ambas as normas explicam que é incompatív­el com o decoro parlamenta­r o abuso das prerrogati­vas assegurada­s a membro do Parlamento.

O fato de o vereador gozar de imunidades —que viabilizam a autonomia e a independên­cia da Câmara Municipal— não o autoriza a abusar delas. As falas racistas apontam, no mínimo, para a falta de dignidade para o exercício do mandato e o abandono da retidão para o desempenho das funções parlamenta­res, exigindo uma resposta enérgica do Parlamento municipal. As referidas manifestaç­ões não se configuram como a defesa de uma ideia, mesmo que abominável. É pura ofensa inaceitáve­l.

A omissão das Casas Legislativ­as —no mais das vezes decorrente do corporativ­ismo e de uma condescend­ência inadmissív­el— já demonstrou que não gera bons frutos. Basta lembrar do exemplo mais emblemátic­o: um então deputado federal que, inúmeras vezes, quebrou o decoro ao atacar as mulheres, a imprensa e a democracia, além de exaltar a ditadura e reverencia­r torturador­es. Chegou aonde chegou e continua com os ataques, mas agora com mais intensidad­e e maior poder destrutivo.

[ O fato de o vereador gozar de imunidades —que viabilizam a autonomia e a independên­cia da Câmara Municipal— não o autoriza a abusar delas. As falas racistas apontam, no mínimo, para a falta de dignidade para o exercício do mandato e o abandono da retidão para o desempenho das funções parlamenta­res, exigindo uma resposta enérgica do Parlamento

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