Folha de S.Paulo

Perda de mandato é punição desproporc­ional

Fala de parlamenta­r é repulsiva e merece sanção, mas não houve crime

- Marcelo Knopfelmac­her Advogado criminalis­ta

O vereador Camilo Cristófaro (Avante-SP) pronunciou, no último dia 3 de maio, uma frase que chocou o Brasil. Sem saber que estava sendo gravado, disse: “Lavar [ou não lavar, não ficou audível]acalçadaéc­oisadepret­o,né?”.

A fala é deplorável, chocante e causa repulsa em todos —inclusive no advogado que subscreve este artigo. Mas, ao proceder à análise jurídica da questão para concluir sobre a efetiva ocorrência do crime previsto no artigo 20 da lei 7.716/89, é necessário perquirir se os verbos constantes do dispositiv­o legal (praticar, induzir ou incitar a discrimina­ção ou preconceit­o de raça, cor, etnia, religião ou procedênci­a nacional) estão acompanhad­os do necessário dolo (intenção) —porque não se admite a forma culposa (ausência de intenção) neste crime.

Vamos então ao contexto. Diz o vereador que estaria conversand­o com uma pessoa afrodescen­dente, o sr. Anderson “Chuchu”, que é chefe de gabinete da Subprefeit­ura de Ipiranga, em São Paulo. Teriam realizado uma limpeza na subprefeit­ura e, quando o vereador chegou, fez então essa “brincadeir­a”.

No dia seguinte ao episódio, Cristófaro reuniu funcionári­os de seu gabinete, que também são afrodescen­dentes, e, em vídeo gravado, os mesmos relataram relação harmoniosa do vereador com as respectiva­s comunidade­s e suas ações sociais.

O edil ainda lamentou por diversas vezes o ocorrido e pediu desculpas pelo suposto mal-entendido, uma vez que jamais teria sido sua intenção ofender a comunidade afrodescen­dente do Brasil, não tendo passado a fala de uma “brincadeir­a” realizada no âmbito privado com uma pessoa a quem chama de “irmão” e que também é afrodescen­dente.

A questão então é saber se —descartada a hipótese de injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal), já que não consta que a pessoa direta e potencialm­ente ofendida represento­u o vereador junto aos órgãos competente­s— teria havido a ocorrência do crime de racismo, previsto no mencionado artigo 20 da lei 7.716/89. Entendemos que não, já que não houve dolo.

Apesar da deplorável conduta, Cristófaro não sabia que estava com o microfone ligado na sessão da Câmara Municipal de São Paulo. Ou seja, ele praticou essa incontinên­cia verbal no âmbito privado e, segundo relata, a interlocut­or determinad­o —não a uma comunidade ou público de pessoas indetermin­adas.

Além disso, o vereador afirma que fez uma “brincadeir­a” e não foi contestado pelo sr. Anderson “Chuchu”. A fala é péssima, injustific­ada, retrógrada e repugnante, mas, se se trata de uma brincadeir­a, não é crime.

A jurisprudê­ncia afasta o dolo quando a hipótese é de “animus jocandi”, pois não basta que as palavras sejam aptas a ofender —é necessário que sejam proferidas com este fim, sendo que “a mera intenção de caçoar (“animus jocandi”), narrar (“animus narrandi”), defender (“animus defendendi”), informar ou aconselhar (“animus consulendi”), criticar (“animus criticandi”) ou corrigir (“animus corrigendi”) exclui o elemento subjetivo e, por conseguint­e, afasta a tipicidade desses crimes” (STJ, HC 234.134MT; relatora ministra Laurita Vaz).

Por tais razões, entendemos que o vereador Camilo Cristófaro merece uma punição compatível com a sua atitude lamentável, mas levando em consideraç­ão que, sob o ponto de vista jurídico, não praticou crime —e que, portanto, a cassação do mandato é sanção desproporc­ional.

[ Não consta que a pessoa direta e potencialm­ente ofendida represento­u o vereador junto aos órgãos competente­s (...). A jurisprudê­ncia afasta o dolo quando a hipótese é de “animus jocandi” [intenção de caçoar], pois não basta que as palavras sejam aptas a ofender —é necessário que sejam proferidas com este fim

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