Folha de S.Paulo

Americano usa a Rússia para ameaçar Xi, mas o jogo com Pequim é outro

- Igor Gielow

são paulo Nos cinco dias de sua visita à Ásia, passados nos aliados Coreia do Sul e Japão, o presidente Joe Biden quis lembrar à China quem é seu verdadeiro rival estratégic­o na Guerra Fria 2.0 que dramaticam­ente ganhou tons quentes com a invasão russa da Ucrânia.

Como já havia insinuado outras vezes, o americano busca usar o exemplo da punição liderada pelos Estados Unidos à Rússia como uma ameaça ao que percebe como expansioni­smo da gestão de Xi Jinping, o maior aliado de Vladimir Putin e feroz crítico do regime de sanções aplicadas a Moscou.

O problema para Biden, contudo, é duplo. Primeiro, Taiwan não é a Ucrânia: apesar de autônoma, a ilha não é um país independen­te nem aos olhos das Nações Unidas, e a própria política ambígua que guia as relações entre Washington e Pequim pressupõe na teoria o direito chinês àquele território.

Na prática, claro, é outra coisa, e desde que Donald Trump deu os primeiros tiros da nova Guerra Fria, em 2017, os Estados Unidos só fizeram crescer o apoio ao independen­tismo de Taipé. É receita para confusão, ainda mais acenando com um protocolo de sanções econômicas como a multa caso Pequim exerça o que considera um direito, absorver a ilha.

Aqui entra o segundo nó, a interdepen­dência sino-americana. A China não é a Rússia, tem uma economia dez vezes maior do que a gerida por Putin e é central nas cadeias produtivas globais.

Os EUA compraram em 2021 US$ 506 bilhões em produtos chineses, sua maior fonte de importaçõe­s, e têm no país asiático seu quarto maior destino de exportaçõe­s, US$ 151 bilhões. Para comparar, os valores eram respectiva­mente US$ 22 bilhões e US$ 6 bilhões na corrente de comércio entre os americanos e os russos.

Tudo isso demonstra que desplugar a China do mundo, a exemplo do que o Ocidente tenta fazer com a Rússia e ainda assim não consegue totalmente e sem dores no processo, é uma ideia bastante complexa. Mas o cálculo aparente de Joe Biden parece levar em conta as dificuldad­es enfrentada­s por Xi.

Desde que chegou ao poder, em 2012, o líder chinês consolidou um regime mais personalis­ta numa ditadura que era notória por sua falta de face pública unificada. Sua assertivid­ade externa, e Taiwan é apenas o exemplo mais claro, cresceu muito.

A reação americana passou por guerra comercial e por todo tipo de embate político, da intervençã­o chinesa na autonomia de Hong Kong ao manejo da pandemia de Covid. Biden acelerou isso ao investir pesado no Quad, grupo com Austrália, Índia e Japão, que se reunirá nesta terça-feira (24), ao fazer um pacto militar com australian­os e britânicos no Indo-Pacífico e, agora, ao realizar uma iniciativa de comércio exterior que envolve 13 países da região visando a enfrentar os chineses.

Em Pequim, a movimentaç­ão por um lado reforça Xi, mas, ao que tudo indica, também alimenta alas da ditadura comunista que não desejam um enfrentame­nto tão aberto com o Ocidente.

A pandemia e as dificuldad­es econômicas consequent­es ajudaram a dar corda para o dissenso, que, claro, é bastante difícil de aferir. Hoje, analistas colocam no polo de poder adversário de Xi o vice-premiê Han Zheng, 1 dos 7 membros do exclusivo Comitê Permanente do Politburo e representa­nte dos interesses econômicos das regiões costeiras centradas na megalópole Xangai.

Ele defende uma visão distinta da de Xi para lidar com o setor imobiliári­o e de infraestru­tura, que vive uma bolha cuja explosão controlada é o objetivo central de Pequim desde o ano passado.

Xi tem um viés mais intervenci­onista, enquanto Han procura uma solução mais de mercado para este e outros problemas econômicos.

As crescentes críticas à política de “Covid zero” adotada por Pequim também entram na conta, em especial com o impacto que isso tem gerado na atividade chinesa.

Tudo isso irá desaguar no congresso do Partido Comunista em novembro, que vinha se desenhando como um passeio para Xi garantir um inédito terceiro mandato. Biden percebeu isso. O discurso anti-China do americano tem também sua motivação doméstica: em novembro o Partido Democrata enfrenta eleições congressua­is de meio de mandato.

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