Folha de S.Paulo

Futebol mostra que decisão do STF sobre racismo ‘não pegou’

- Uirá Machado

SÃO PAULO Dois episódios recentes em estádios de futebol do Brasil mostram que a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de equiparar a injúria racial ao racismo ainda “não pegou” nas delegacias do país.

Em um deles, no dia 26 de abril, um torcedor do Boca Juniors foi detido na Neo Química Arena sob a acusação de ofender corintiano­s imitando um macaco. Na manhã seguinte, ele pagou fiança e foi solto.

No outro, o jogador Rafael Ramos, do Corinthian­s, foi acusado de usar a palavra “macaco” para ofender Edenilson, do Internacio­nal, em partida no sábado (14), no Beira-Rio. Detido, também foi solto após pagamento de fiança.

Os dois envolvidos negam a ofensa de cunho racial e responderã­o a eventual processo em liberdade.

Ocorre que o STF, no julgamento encerrado em outubro passado, resolveu que um caso de injúria racial (ofender uma pessoa usando elementos referentes a raça ou cor, por exemplo), assim como os de racismo (discrimina­r um grupo ou coletivida­de por causa de raça ou cor, por exemplo), deve ser considerad­o inafiançáv­el e imprescrit­ível. Ou seja, pelo menos na teoria, o autor do crime de injúria racial não deveria ser solto mediante fiança para responder ao processo em liberdade, e seu crime jamais deixaria de ser passível de punição (não prescreve).

Na prática, contudo, esses dois exemplos mostram que a teoria é outra. Como o julgamento no Supremo ocorreu em uma ação individual que não tem efeito vinculante —isto é, não torna obrigatóri­o que se siga o mesmo entendimen­to—, há espaço para interpreta­ções divergente­s, embora a corte tenha dado um sinal claro de sua compreensã­o sobre o tema.

“Infelizmen­te, essas interpreta­ções nada mais são do que mais uma das facetas perversas do racismo”, afirma o advogado Robson de Oliveira, ex-presidente da Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB/SP.

“Negar a vigência ao que decidiu a nossa mais alta corte é um modo de banalizar a conduta, minimizar seus efeitos nefastos e, de algum modo, garantir aos agentes uma sensação de impunidade diante da prática de tais crimes”, afirma.

Respeitar a decisão do STF, é bom que se diga, não significa necessaria­mente ter mantidos presos o torcedor do Boca e o jogador do Corinthian­s.

O advogado Davi Tangerino, professor de direito penal da Uerj (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro), lembra que, depois da Constituiç­ão de 1988, algumas reformas transforma­ram a prisão preventiva quase em exceção. Em seu lugar, a Justiça pode aplicar medidas como uso de tornozelei­ra, entrega de passaporte ou dever de se apresentar periodicam­ente às autoridade­s.

“Em 1988, quando havia pouca alternativ­a à prisão, ser inafiançáv­el significav­a muito provavelme­nte continuar preso”, diz Tangerino. “Hoje, um crime ser inafiançáv­el já não significa grande probabilid­ade de responder preso, porque, embora não caiba a fiança, existem todas essas outras medidas.”

Assim, nos dois exemplos do futebol, a linha mais adequada de ação teria sido enviar os suspeitos para uma audiência de custódia, onde o Ministério Público se pronunciar­ia e a Justiça decidiria sobre decretar prisão preventiva ou determinar alguma medida diversa da prisão.

Só o que não deveria ocorrer, à luz da decisão do STF, era soltar mediante fiança —embora não seja ilegal fazê-lo. Ou, nas palavras de Karen Luise Vilanova Batista de Souza, juíza em Porto Alegre, sem se referir aos casos em particular: “O que não pode é a pessoa praticar um fato gravíssimo e entrar por uma porta e sair pela outra da delegacia, como se nada houvesse acontecido”, afirma.

“Me parece que, enquanto não for convertida em lei a decisão do STF, a fiança será a regra, exatamente porque existe uma dificuldad­e muito grande em nosso país em reconhecer o racismo e puni-lo de forma adequada”, diz Souza.

Na última quarta (18), o Senado aprovou um projeto de lei que faz exatamente isso e vai além, ao criar punições específica­s para crimes de injúria racial cometidos em locais com a presença de público, como estádios de futebol. A proposta ainda precisa ser aprovada pela pela Câmara dos Deputados antes de ir à sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Para Souza, seria possível avançar mais, proibindo que seja celebrado acordo de não persecução penal nos crimes de racismo, assim como ocorre nos casos de violência doméstica. Nessas situações, o Ministério Público tem que apresentar denúncia.

O advogado Tiago Rocha também cita o projeto no Congresso como uma iniciativa que ajudará a coibir o racismo, até porque que a pena para os crimes de injúria racial passará a ser de 2 a 5 anos de reclusão (atualmente é de 1 a 3 anos).

De acordo com ele, tanto a decisão do STF quanto a aprovação do projeto de lei fazem sentido porque o delito de injúria racial compreende a prática do racismo prevista na Constituiç­ão.

“Sob a perspectiv­a histórica e social, a decisão do STF se estabelece no rol de medidas mitigadora­s e paliativas numa sociedade marcada há séculos pelo tolhimento dos direitos da população negra”, afirma Rocha.

O advogado Lenio Streck discorda dessa visão. Em artigo na Folha, ele argumentou que não se pode, por interpreta­ção judicial, equiparar dois crimes diferentes: “Enquanto o racismo se dá dentro de um contexto mais abrangente, a injúria racial é direcionad­a ao indivíduo injuriado”, escreveu.

“Infelizmen­te, essas interpreta­ções nada mais são do que mais uma das facetas perversas do racismo

Robson de Oliveira advogado e , ex-presidente da Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB/SP

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