Folha de S.Paulo

Falta de protocolo da Saúde dificulta processo de transição para crianças

CFM libera bloqueador­es a partir do início da puberdade, mas ministério desaconsel­ha procedimen­tos para menores de 18 anos

- Dani Avelar

SÃO PAULO Eduardo (nome fictício) é uma criança feliz.

O menino de 13 anos gosta de andar de bicicleta, jogar vôlei com os amigos e ir à praia no litoral norte de São Paulo, onde vive com a família. Quando crescer, quer ser líbero em uma equipe profission­al de vôlei ou então estudar biologia marinha.

Eduardo também é um garoto trans. “Não acho que eu tenha nada de diferente de outros amigos na minha escola”, afirma. Ele sabe que é menino “desde um aninho de idade”, e conta com o apoio dos pais para viver a sua identidade de gênero livremente.

Há cerca de três anos, começou a tomar bloqueador­es de puberdade, que impedem o desenvolvi­mento de caracteres sexuais secundário­s, como o cresciment­o das mamas e o início da menstruaçã­o. O medicament­o também é utilizado para retardar os efeitos de hormônios sexuais em crianças diagnostic­adas com puberdade precoce.

“Sem o bloqueio, iria me sentir desconfort­ável com caracterís­ticas femininas. Talvez teria dificuldad­e em praticar alguns esportes”, diz Eduardo. A família pediu para manter o anonimato por temer ser alvo de perseguiçã­o judicial, que poderia pôr em risco o acesso da criança ao atendiment­o médico.

A maioria das crianças e dos adolescent­es trans enfrenta dificuldad­es para ter suas necessidad­es médicas atendidas. A ausência de protocolo federal, o despreparo de equipes médicas e a falta de apoio dos pais são os maiores obstáculos para que transexuai­s menores de 18 anos acessem os serviços de saúde no Brasil.

Fúria (nome fictício), 21, fugiu da casa dos pais no Paraná e veio para São Paulo aos 18 anos. Ela compra hormônios na farmácia mesmo sem receita, e toma por conta própria para que seu corpo tenha traços mais femininos. Conta que, se tivesse condições e o apoio dos pais, teria iniciado sua transição aos 12 anos de idade.

Moradora da Casa Florescer, centro de acolhiment­o para mulheres transe travestis no Bom Retiro, região central da capital paulista, Fúria aprendeu afazer auto hormonizaç­ão comas travestis mais velhas. A prática, quando feita sem acompanham­ento médico, aumenta os riscos à saúde, como trombose e problemas no fígado.

“Não me importo com os riscos. Sendo travesti e vivendo na rua, agente acabas e desapegand­o da nossa saúde ”, diz. Ela evita o SUS (Sistema Único de Saúde) por causa da demora para agendar consultas e da falta recorrente de hormônios nos postos.

A realização de bloqueio puberal e hormonizaç­ão em crianças e adolescent­es trans não é proibida no Brasil, mas sofre coma falta de regulament­ação. OC FM( Conselho Federal de Medicina ), por meio de resolução de 2019, indica bloqueador­es a partir dos primeiros sinais da puberdade, e hormonizaç­ão a partir dos 16 anos. Cirurgias de modificaçã­o corporal são vedadas a menores de 18 anos.

Por outro lado, o Ministério da Saúde não recomenda os procedimen­tos para pacientes trans menores de idade. A decisão se ampara em uma portaria de 2013. “Cabe à equipe médica de cada local a indicação dos procedimen­tos adequados para cada caso”, diz a pasta, por meio de sua assessoria de imprensa.

A reportagem encontrou apenas seis estabeleci­mentos do SUS em todo o país que oferecem bloqueio puberal ou hormonizaç­ão para pessoas trans nesta faixa etária. As regiões Norte e Centro-Oeste estão desassisti­das.

Buscar atendiment­o por meio de consultóri­os particular­es também é um desafio. São frequentes os relatos de médicos que se recusam a atender pacientes trans. E, enquanto cirurgias de modificaçã­o corporal têm cobertura obrigatóri­a por planos de saúde, o mesmo não se aplica ao bloqueio e à hormonizaç­ão, diz a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa­r).

A realização desses procedimen­tos pode ajudar a evitar transtorno­s como depressão e ansiedade, explica o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenado­r do Amtigos (Ambulatóri­o Transdisci­plinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), ligado ao Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas da USP (Universida­de de São Paulo). A unidade é pioneira no país no atendiment­o a crianças e adolescent­es trans.

A falta de assistênci­a pode ainda agravar a disforia de gênero, como é conhecido o desconfort­o agudo que algumas pessoas trans sentem em relação ao próprio corpo, condição que pode levar à automutila­ção e tentativas de suicídio em casos mais graves. Vale lembrar que nem todas as pessoas trans realizam intervençõ­es médicas.

“O bloqueio é totalmente reversível e, quando devidament­e acompanhad­o, tem poucos riscos”, diz Saadeh.

“A hormonizaç­ão é parcialmen­te reversível, ou seja, uma parte, quando suspensa, segue a biologia, outra vai necessitar de outras intervençõ­es médicas. Por isso a importânci­a de um acompanham­ento criterioso e diagnóstic­o o mais preciso possível para não colocar o adolescent­e nessa situação.”

Estudo do Trans Youth Project, entidade que atende crianças e adolescent­es trans nos Estados Unidos e no Canadá, aponta que, cinco anos após a transição, apenas 2,5% dos participan­tes voltaram a se identifica­r com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento.

O psicólogo Ricardo Barbosa, coordenado­r do Ambulatóri­o de Saúde Integral para Travestis e Transexuai­s do Centro de Referência e Treinament­o DST/Aids do estado de São Paulo, explica que as secretaria­s municipais e estaduais devem seguir as normativas do Ministério da Saúde.

“Não tenho a menor dúvida de que deveria haver uma revisão da portaria [de 2013 da pasta]. Deveriam ser criadas linhas de cuidado voltadas a esse segmento da população trans [menores de 18 anos]. Mas isso tem que partir de uma normativa federal”, diz.

Ele também afirma que profission­ais de saúde devem ser preparados para atender a população trans. É frequente que esse grupo passe por constrangi­mentos em estabeleci­mentos de saúde, como ser chamado pelo nome de registro em vez do nome social, e ouvir perguntas impertinen­tes sobre o seu corpo.

Mesmo quando jovens trans encontram uma unidade que os atenda, a falta de apoio dos pais é um entrave. Estabeleci­mentos de saúde exigem autorizaçã­o de um responsáve­l legal para atender pacientes menores de 18 anos.

A atriz recifense Anne Mota, 23, contou com o apoio da mãe quando decidiu começar a transição, aos 16 anos. Mota interpreto­u uma adolescent­e trans que começa a tomar hormônios e busca ser aceita na escola no filme “Alice Júnior” (2019, disponível na Netflix).

“Iniciar a hormonizaç­ão na adolescênc­ia permitiu que eu desenvolve­sse uma relação melhor com o meu corpo”, afirma. Mota lembra que quando um jovem trans não tem acesso à saúde nem apoio dos pais, “acaba caindo nessa de tomar hormônios por conta própria, o que é muito perigoso”.

Eduardo, que pretende continuar tomando bloqueador­es de puberdade, espera que ser uma pessoa trans “não influencie em nada” na sua vida quando for adulto. “Por que uma criança não pode se identifica­r do jeito que ela quer? Por que uma genitália tem que definir tudo sobre ela?”

“O bloqueio [puberal] é totalmente reversível e, quando devidament­e acompanhad­o, tem poucos riscos

Alexandre Saadeh psiquiatra

 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Eduardo (nome fictício), 13, menino trans que toma bloqueador­es de puberdade
Karime Xavier/Folhapress Eduardo (nome fictício), 13, menino trans que toma bloqueador­es de puberdade

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil