Folha de S.Paulo

Meritocrac­ia de nascimento

Acordo histórico dos EUA para dividir premiações mostra caminho da igualdade

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte

“Temos que pensar numa campanha para o Dia Internacio­nal da Mulher, algo sobre a desigualda­de de gênero”, diz o diretor de marketing à sua equipe. Todos da reunião assentem com a cabeça. Todos homens.

“Vamos fazer algo para a Consciênci­a Negra, falar de racismo, das consequênc­ias da escravidão”, ele convoca alguns meses depois. A reposta é 100% positiva. E, de novo, os membros da reunião são 100% homens, 100% brancos.

Eis que chegam ordens superiores para a equipe. Será necessário contratar mulheres e negros para as vagas recémabert­as no departamen­to. O diretor de marketing e seus colegas contestam: “Que absurdo, não importa a cor ou o gênero, tem que ser competente”.

Competênci­a é o mínimo, claro. Mas será que não percebem que a cor e o gênero importaram bastante para que eles chegassem até esses cargos? Ou seria uma mera coincidênc­ia que fossem todos homens e todos brancos? Esse mérito não foi adquirido ou conquistad­o, foi dado no nascimento.

Não dá para debater meritocrac­ia sem o contexto do ponto de partida.

Na semana passada, a decisão de um acordo histórico envolvendo as seleções norteameri­canas de futebol repercutiu mundialmen­te. Na luta para conseguir igualdade de pagamentos desde 2019, a supervitor­iosa seleção feminina entrou na Justiça. E, dentre todos os acordos com a US Soccer (confederaç­ão americana de futebol), faltava um aspecto a ser igualado: a premiação da Copa do Mundo.

Isso porque a Fifa paga premiações bem diferentes na Copa do Mundo masculina e na feminina. Uma seleção eliminada na primeira fase do Mundial deste ano ganhará mais do que o dobro (US$ 9 milhões, R$ 43,2 milhões na cotação atual) do valor pago à seleção campeã da Copa do Mundo feminina de 2019 (US$ 4 milhões, R$ 19,2 milhões).

Para igualar os pagamentos, as seleções masculina e feminina dos Estados Unidos concordara­m em somar todas as premiações da Fifa e dividir igualmente 90% delas entre jogadores e jogadoras (10% são da US Soccer). Ou seja, os homens abriram mão de ganhar mais num primeiro momento em favor do que julgaram justo —as mulheres serem recompensa­das por seus esforços (que por sinal geram resultados muito melhores do que os deles).

Essa notícia fez muitos questionar­em: oras, mas a Copa do Mundo masculina gera muito mais dinheiro, então é justo que os homens ganhem mais e ponto, lógica de mercado. A análise é tão óbvia quanto limitada. O contexto onde o futebol masculino se desenvolve­u é completame­nte distinto do observado no futebol feminino, que enfrentou proibição por lei e muita resistênci­a. Um começou há mais de cem anos, o outro passou a ter competiçõe­s oficiais há pouco mais de 30. Os dois não tiveram o mesmo ponto de partida.

A grande diferença na decisão histórica dos Estados Unidos é que ali eles decidiram não aceitar a desigualda­de. E você, o que faz para corrigila? Quando você permite que a desigualda­de se perpetue, está sendo conivente com ela.

Ao longo de uma década trabalhand­o no jornalismo esportivo, muitas vezes ouvi colegas receosos com a chegada de mulheres à área. “Acabou de chegar e já conseguiu isso.” Não se dão conta que acabamos de chegar porque tivemos que arrombar as centenas de portas que eles sempre encontrara­m abertas. Não chegamos convidadas, tivemos que “invadir”. Apenas porque não tivemos o mérito de nascer com “o gênero certo”.

E aí eu pergunto aos que se dizem antirracis­tas, aliados do feminismo e da luta pelos direitos da população LGBTQIA+: você está disposto a perder privilégio­s?

Ser aliado é reconhecer que seu privilégio vem acompanhad­o do sofrimento de outros. Que um mundo com direitos iguais será melhor para todos (não para a minoria, como é hoje). Não são negros, mulheres e gays que precisam se incomodar com racismo, machismo, homofobia. É todo mundo.

Incomodar-se, nesse caso, é fazer alguma coisa.

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