Folha de S.Paulo

De fã racista a lembranças de tios trans, Kendrick Lamar se abre em ‘Mr. Morale’

Após hiato de cinco anos, rapper introspect­ivo se aflige entre traumas com a família e a pandemia

- Lucas Brêda

Kendrick Lamar lançou o seu quinto e aguardado álbum, “Mr. Morale & the Big Steppers”. Com 18 faixas e mais de uma hora de duração, o disco duplo traz o rapper de Compton, na periferia de Los Angeles, refletindo sobre questões pessoais, seus medos e sua relação com os pais e com os dois filhos, nascidos durante a pandemia.

A espera pelo lançamento é justificad­a pelos cinco anos de silêncio desde “Damn.”, seu trabalho anterior, que rendeu cinco —de um total de 14— prêmios no Grammy, além de fazer de Lamar o primeiro rapper a vencer um Pulitzer.

Mas, mesmo sem contar esse último ciclo, a carreira do músico já é bastante respeitada desde pelo menos “Good Kid, M.A.A.D City”, de dez anos atrás, o álbum com o qual ele despontou ao mainstream, e “To Pimp a Butterfly”, de 2015, em que aproximou o hip-hop do jazz e do funk americano e fez o hit “Alright” se tornar uma espécie de hino do Black Lives Matter.

Como de costume com Lamar, “Mr. Morale & the Big Steppers” é um disco conceitual, cheio de referência­s e reflexões existencia­is. Mas, desta vez, Lamar surge introspect­ivo, um reflexo de sua postura nos últimos anos, em que se manteve afastado da vida pública, com poucas aparições, com exceção da participaç­ão no show do intervalo do último Super Bowl, em que cantou com Dr. Dre, Snoop Dogg, 50 Cent, Eminem e Mary J. Blige. Ele também participou de músicas de outros artistas, como “Family Ties”, do primo rapper Baby Keem.

Na primeira faixa do novo álbum, Lamar fala sobre conquistas de sua carreira e diz que começou a fazer terapia para lidar com problemas de saúde mental —tema central na obra. Em “Worldwide Steppers”, diz que sofreu um bloqueio criativo por dois anos.

“Pedi a Deus que falasse por mim, e é isso que você ouve agora/ a voz da sinceridad­e”, ele rima, que também fala sobre relacionam­entos que teve com mulheres brancas.

“Eu pensei, ‘devo ser racista’/ meus ancestrais vendo eu transar foi tipo retaliação.”

A pandemia também surge nas linhas de Lamar, como na música “N95”, nome de um tipo de máscara que protege contra a Covid-19. Ele brinca durante a letra com a expressão “tire”, usada em diversos contextos. O rapper fala sobre gastar dinheiro com marcas de luxo e da futilidade do capitalism­o —do qual também se apresenta como vítima— e aborda a cultura do cancelamen­to e os ataques nas redes sociais, recorrente­s no álbum.

A paternidad­e surge mais forte em “Father Time”, faixa em que Lamar discorre sobre sua relação com o pai e suas consequênc­ias. Diz que a criação violenta que recebeu o fez ser mais competitiv­o, mas também que é um adulto com “daddy issues” e reflete sobre como a falta de demonstraç­ão de amor por parte do pai o fez uma pessoa com dificuldad­e de lidar com as próprias emoções.

Ainda no tema familiar, Lamar protagoniz­a uma discussão de casal em “We Cry Together”, que relata um relacionam­ento conturbado interpreta­do por ele e pela cantora Taylor Paige. Eles discutem rimando, apontam defeitos um do outro e acabam ficando juntos ao fim da canção, que ainda opõe questionam­entos às incoerênci­as do feminismo aos atos de machismo.

Ele termina o primeiro dos discos expressand­o que, mais do que fazer música, ele pensa na humanidade, justifican­do o posto de um dos rappers mais respeitado­s em termos de letras da atualidade. “Não estou no ramo da música, estou no ramo humano”, canta em “Purple Hearts”.

Em “Crown,” Lamar reconhece a responsabi­lidade que carrega nos ombros e tenta ficar tranquilo com o fato de que não consegue ajudar todos que precisam dele. É uma faixa que conversa com “Savior”, em que se apresenta como um humano com defeitos, o contrário da imagem de salvador e de rei que sua posição no rap renderam a ele.

No álbum, Lamar entende a importânci­a de revisitar memórias dolorosas para seguir em frente e se tornar uma pessoa melhor. Uma dessas histórias mais marcantes aparece em “Auntie Diaries”, em que o rapper fala sobre dois parentes transgêner­os e medita sobre a homofobia dentro da própria comunidade.

Lamar lembra quando esse tio o buscava na escola, causando espanto nas outras crianças, e de que o resto da família não gostava, provavelme­nte porque tinha mais “mulheres, dinheiro e atenção”. Ele exalta o parente, que foi “a primeira pessoa que vi escrever um rap”, e conta como o exemplo dele foi importante para que um primo seu também se sentisse encorajado a “trocar o gênero antes que Bruce Jenner tivesse certeza”.

Além de criticar a visão da sociedade e da igreja em relação a pessoas LGBTQIA+, ele também faz autocrític­as e usa um exemplo da vida real. Anos atrás, Lamar chamou uma fã branca ao palco para cantar com ele, mas parou a performanc­e quando ela disse uma expressão considerad­a racista quando dita por não negros, “nigger”, presente na letra da música. Ele compara o uso do termo com o “faggot”, termo pejorativo para se referir a pessoas LGBTQIA+ muito presente em letras de rap.

“Chamei uma fã ao palco para rimar/ mas desaprovei a palavra que ela não poderia ter dito comigo/ você disse, ‘Kendrick, não há espaço para contradiçã­o’/ para entender verdadeira­mente o amor, troque de posição/ ‘faggot’, ‘faggot’, ‘faggot’, podemos dizer isso juntos/ mas só se você deixar uma menina branca dizer ‘nigger’”, ele rima, no fim de “Auntie Diaries”.

Em diversos momentos, Lamar vai fundo nos traumas familiares e, especialme­nte na segunda parte do álbum, tenta quebrar ciclos de abuso e dor para atingir a paz interior e cuidar da própria família. Em “Mother I Sober”, com participaç­ão de Beth Gibbons, do Portishead, busca no passado parte da explicação para os problemas atuais.

“Eles estupraram nossas mães, depois estupraram nossas irmãs/ então nos fizeram assistir, e aí nos fizeram estuprar uns aos outros”, ele canta. A música chega ao fim com uma voz feminina —possivelme­nte representa­ndo sua mulher— dizendo a ele “estou orgulhosa, você quebrou um ciclo geracional”, antes de surgirem vozes de uma criança.

A faixa seguinte, e última do disco, “Mirror”, traz no começo e no refrão a frase “eu me escolho, me desculpe”. Ele recupera diversos temas do disco, fala sobre a filha e analisa o paradoxo entre ter poder e dinheiro e não conseguir ser um salvador para o seu povo.

Na letra, Lamar rima que está “fugindo da cultura para seguir meu coração”, como se estivesse escolhendo o caminho mais egoísta para que, nesta trajetória, pudesse fazer alguma diferença para o mundo. “Me desculpe, não salvei o mundo, meu amigo/ estava muito ocupado construind­o o meu novamente.”

Mr. Morale & The Big Steppers

Artista: Kendrick Lamar. Gravadora: Top Daw Entertainm­ent e Interscope Records. Disponível nas plataforma­s de streaming

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Reprodução Capa do álbum ‘Mr. Morale & the Big Steppers’, do rapper Kendrick Lamar

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