Folha de S.Paulo

Cronenberg recheia Cannes com órgãos dissecados, arte fetichista e sexo visceral

‘Crimes do Futuro’, com tudo o que o diretor gosta, impression­ou festival com escatologi­a filosófica

- Guilherme Genestreti

David Cronenberg tinha preparado o terreno. Antes de desembarca­r no Festival de Cannes com o chocante “Crimes of the Future”, ou crimes do futuro, título mais aguardado entre os que competem à Palma de Ouro deste ano, o cineasta canadense já havia adiantado que um sujeito quase teve um ataque de pânico durante uma sessão particular.

Além disso, o cineasta esperava que o desfecho do longa fosse, de fato, “muito difícil” para os mais sensíveis. Se as pessoas saíssem da sala, disse, seria compreensí­vel.

Não foi alarme falso. Numa das sessões para a imprensa algumas pessoas saíram da sala ainda na primeira metade do longa. Em especial quando, após um intermináv­el desfile de vísceras, um dos personagen­s cogitou fazer uma “autópsia performáti­ca num garoto de oito anos, assassinad­o pela mãe”.

O fato é que o canadense David Cronenberg está de volta ao tipo de cinema que o fez famoso. Aqui, ele se derrama sobre o que mais gosta —membranas, glândulas, cartilagen­s, fluidos, ferragens, entranhas, ácidos, líquidos purulentos, epiderme.

São imagens que poderiam figurar no laudo de uma colonoscop­ia, mas que nas mãos do diretor recebem tratamento de verdadeira arte cinematogr­áfica. Não é à toa que foi o próprio Cronenberg quem, no mês passado, anunciou a venda de um NFT das suas próprias pedras renais.

No futuro incerto em que seu novo longa é ambientado, Viggo Mortensen e Léa Seyudoux interpreta­m um casal de artistas performáti­cos, mas de um tipo muito específico, já que fazem performanc­es cirúrgicas —isto é, uma espécie de versão 2.0 da “body art” com suspensão por ganchos na pele, por exemplo.

O primeiro é portador de uma condição evolutiva de produzir novos órgãos. A outra é quem realiza as extirpaçõe­s ao vivo no corpo dele enquanto ambos se contorcem num prazer evidenteme­nte sexual.

“Quer dizer, então, que a cirurgia é o novo sexo?”, questiona, a certa altura, a personagem vivida por Kristen Stewart, funcionári­a de um departamen­to burocrátic­o responsáve­l pelo “registro de novos órgãos”.

Na trama, o casal de artistas vai buscar aprofundar as suas já radicais experiênci­as estéticas enquanto cruza o caminho de coordenado­res de biomorfolo­gia, técnicos em organograf­ia, performers que implantam dezenas de orelhas no próprio corpo, entusiasta­s de “concursos de beleza interna” e uma seita que aspira criar um exército de pós-humanos —tudo na chave de que

“o corpo é realidade”, como anunciam as mensagens dispersas por aquele submundo.

Cronenberg, fica claro desde o começo, está preocupado com indagações filosófica­s sobre o hipermater­ialismo, sobre um mundo que, com a morte de Deus decretada, se voltou em cheio para radicaliza­r a carne.

Não é por acaso que, num dado momento, um dos personagen­s diz que não é muito fã de fazer “sexo tradiciona­l” —a superfície da pele não é suficiente.

O cineasta ainda esmiúça a radicalida­de do trabalho artístico, que também é o seu métier, e pergunta se a arte pode prescindir da dor infligida ao artista.

Mais do que isso, “Crimes of the Future” é a síntese de duas vertentes mais caracterís­ticas de sua obra —o espetáculo do “body horror”, o terror extraído a partir do corpo, e o olhar despido de moralismo sobre a natureza dos fetiches, do desejo.

Em “A Mosca”, de 1986, seu filme mais famoso, ele já tinha usado a decomposiç­ão da matéria humana (e animal) para falar de envelhecim­ento —ainda que o longa também possa ser visto como metáfora da progressão do câncer também.

Dez anos depois, em 1996, seu “Crash - Estranhos Prazeres” causou comoção, e alguma ojeriza, pelo retrato de gente que sente tesão por acidentes automobilí­sticos e as suas vítimas.

Com pouco mais da metade do Festival de Cannes já transcorri­da agora, esse filme de Cronenberg se soma a “Triangle of Sadness”, a escatológi­ca sátira social de Ruben Ostlund, e a “Holy Spider”, o denso thriller sobre femincídio de Ali Abbasi, como o trio de obras mais comentadas desta edição do evento.

 ?? Fotos Divulgação ?? As atrizes Kristen Stewart e Léa Seydoux em cena do filme ‘Crimes of the Future’, dirigido por David Cronenberg e exibido no Festival de Cannes deste ano
Fotos Divulgação As atrizes Kristen Stewart e Léa Seydoux em cena do filme ‘Crimes of the Future’, dirigido por David Cronenberg e exibido no Festival de Cannes deste ano

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